HematologiaInfectologia

Neutrofilia no Pronto-Socorro Infantil — Qual o seu Real Valor?

Compartilhe conhecimento:

Discutimos a neutrofilia nos pacientes pediátricos, com destaque para a fisiopatologia e suas principais causas. 

 

Leucocitose é um achado laboratorial comum em ambientes hospitalares, em especial nos prontos-socorros (PS) durante as investigações de casos febris agudos. Não pouco frequente, deparamo-nos com situações em que há prescrição de antibióticos para crianças com leucocitose e neutrofilia por conta de um “hemograma infeccioso”. Essa condição realmente existe? O risco de uma doença bacteriana grave nos casos de febre que cursam com neutrofilia justifica a prescrição empírica de antibióticos ou apenas aumenta a estatística de prescrições irracionais destes medicamentos?

 

NEUTROFILIA: DEFINIÇÃO

Neutrofilia é o aumento de pelo menos dois desvios padrão no número de neutrófilos presentes no sangue periférico. Em adultos, a faixa normal de leucócitos (com dois desvios padrão abaixo e acima da média) varia de 4.400 a 11.000 células/mm3, sendo cerca de 60–70% neutrófilos polimorfonucleares (PMN). [1] Em crianças, os valores de normalidade variam conforme a idade, como conta na Tabela 1 abaixo:

Tabela 1 – Valores normais de leucócitos e neutrófilos absolutos em neonatos e crianças

Adaptado de UpToDate in: Approach to the patient with neutrophilia. Acesso em novembro/17

 

FISIOPATOLOGIA — POR DENTRO DA MEDULA ÓSSEA

Um precursor comum (CD34 positivo) dá origem a todos os leucócitos e eritrócitos nucleares por meio de um ciclo de crescimento complexo e bem orquestrado. Essa célula tronco precursora comum gradualmente se diferencia em precursores granulocíticos e mononucleares, bem como em precursores eritrocíticos, com cada divisão produzindo células mais maduras e menos capazes de se auto renovarem. Numerosas citocinas e fatores de crescimento hematopoiéticos atuam sobre essas células em desenvolvimento ao longo de todo esse processo e influenciam no fenótipo final.

A medula óssea tem uma capacidade gigantesca de produção celular, sintetizando cerca de 100.000.000.000 (1011, ou cem bilhões) de neutrófilos por dia.

Os precursores granulocíticos na medula óssea são os mieloblastos, promielócitos e mielócitos, e constituem a população de células que sofrem mitoses (proliferativa), tendo sua produção aumentada em situações de inflamação sistêmica ou nas leucemias. Os precursores mais maduros, como os metamielócitos, bastonetes e segmentados não são capazes de se replicar (reserva). Neutrófilos já totalmente diferenciados são armazenados na própria medula óssea ou então encontram-se marginalizados, presos no endotélio dos vasos e prontos para serem liberados para a grande circulação mediante estímulos. Esses estímulos incluem febre, necrose tecidual, níveis aumentados de catecolaminas, hipóxia, sangramento e a liberação de várias citocinas em diversas doenças. Uma vez na circulação, esses neutrófilos migram para tecidos extravasculares dentro de 6–12 horas, o que significa que, para que uma contagem de leucócitos esteja elevada no sangue num determinado momento, a produção e liberação constantes de números elevados dessas células numa taxa aumentada deve estar ocorrendo na medula óssea. [2]

 

CAUSAS DE NEUTROFILIA

As causas de neutrofilia variam de acordo com a população observada. Por exemplo, o que mais provoca aumento no número de PMN em pacientes hospitalizados não é o mesmo que em pacientes assintomáticos ambulatoriais, nem as principais causas de neutrofilia em adultos são as mesmas de crianças. [1] A Tabela 2 abaixo mostra suas principais causas:

Tabela 2 – Causas de Neutrofilia

Adaptado de UpToDate in: Approach to the patient with neutrophilia. Acesso em novembro/17
As principais causas de neutrofilia aparecem destacadas em negrito.

 

Infecções

Sem dúvidas, infecções em geral são causas bastante frequentes de neutrofilia em qualquer grupo de pacientes (adultos ou crianças, internados ou ambulatoriais), conforme comprovam recentes estudos científicos.

Um estudo israelense publicado em 2010 comparou a incidência de infecções bacterianas graves em crianças febris (>38 °C), de 3–36 meses, que procuraram os serviços de urgência e que se apresentavam com ou sem leucocitose extrema (leucócitos >25.000 células/mm3). Foram incluídas 146 crianças no grupo com leucocitose extrema e 292 no grupo controle (relação 1:2). Infecção bacteriana grave foi encontrada em 57 (39%) pacientes com leucocitose extrema, comparada com 45 (15,4%) no grupo controle (p<0,001). Pneumonia lobar ou segmentar foi a causa mais comum de infecção bacteriana grave, diagnosticada em 41 (28%) pacientes no grupo de casos, versus 27 (9,2%) nos controles. [3]

Esses resultados foram confirmados por outro estudo, publicado em 2015 no Pediatric Emergency Care: infecção bacteriana grave foi encontrada em 39% de 147 crianças estudadas (3–36 meses) que se apresentavam com febre e leucocitose extrema. Pneumonia lobar ou segmentar também foi a causa mais comum (19%), seguida por infecção do trato urinário (10,9%). Também notaram que a proteína C reativa (PCR) foi significativamente maior no grupo com infecção bacteriana grave e neutrofilia extrema. [4]

sistema imune em acao

Para crianças com idade ≤60 dias, no entanto, um estudo recém-publicado no JAMA revelou que não há parâmetros hematimétricos confiáveis para correlacionar quadros febris (temperatura ≥38 °C) com doença bacteriana grave — definida como meningite bacteriana e/ou bacteremia. Foram incluídos 4.313 lactentes na faixa etária acima, sendo constatada infecção bacteriana grave em 2,2% deles. A sensibilidade para os parâmetros hematimétricos também foi baixa: para leucograma <5.000 células/mm3, 10%; PMN ≥10.000/mm3, 18%; e plaquetas <100.000/mm3, 7%. [5]

O esfregaço de sangue pode mostrar granulações tóxicas, corpos de Döhle e vacúolos citoplasmáticos em neutrófilos. Certas bactérias causam contagem de leucócitos particularmente alta, como o pneumococo, os Staphylococcus e o Clostridium difficile. Entretanto, neutrofilia também pode estar associada a infecções virais (mononucleose, especialmente em <5 anos; herpes simples; varicela), leptospirose e tuberculose avançada. [1]

No caso particular do C. difficile, neutrofilia deve levantar a suspeita de infecção por esse agente em pacientes hospitalizados que desenvolvem diarreia, febre e inflamação da mucosa colônia com formação de pseudomembrana. Um estudo de 2002 conduzido num hospital terciário de Houston, nos EUA, incluiu 400 pacientes e constatou que o C. difficile foi responsável por 25% dos casos de neutrofilia em pacientes sem doenças neoplásicas, especialmente naqueles em que a contagem de leucócitos for >30.000 células/mm3, mas que deve ser considerado mesmo em pacientes sem diarreia e com leucócitos totais >15.000/mm3. [6] Outros estudos revelaram casos que evoluíram com reações leucemoides, por vezes com contagem de leucócitos >100.000 células/mm3, e estes estiveram associados a 100% de mortalidade. [2]

 

Neoplasias

Há associação de aumento de PMN com todas as neoplasias mieloproliferativas, tais quais:

  • Leucemia mieloide crônica (LMC) — Rara em crianças, soma 4% dos casos de leucemias na infância [7]. Sua característica principal é a presença de células em todos os estágios de maturação (de segmentados até blastos) no sangue periférico, acompanhada de trombocitose, policitemia, eosinofilia e/ou basofilia e esplenomegalia.
  • Leucemia mielomonocítica aguda (LMMJ) — ainda mais rara que a LMC (2–3% dos casos de leucemias), a LMMJ tem 95% dos seus casos diagnosticados em crianças <2 anos [Abrale]. Manifesta-se com neutrofilia e infiltração do sangue periférico, medula óssea e vísceras por células mielomonocíticas anormais. [1]
  • Outras: policitemia vera, trombocitemia essencial, leucemia mielomonocítica crônica e leucemia neutrofílica crônica, no caso das hematológicas; secundária a metástases, infecções no caso de tumores sólidos e como efeitos paraneoplásicos, em neoplasias não hematológicas. [8]

 

Inflamações

Quadros crônicos e agudos podem estar associados ao aumento do número de neutrófilos no sangue periférico, sendo as mais comuns na infância a artrite reumatoide juvenil e na doença de Kawasaki. É importante ressaltar que, na suspeita de doenças inflamatórias, outras doenças, como infecções ou malignidades, devem ser descartadas, bem como correlações com outros achados em exames físicos devem ocorrer. [1]

 

Medicações

Qualquer medicação pode causar neutrofilia, mas as principais são aquelas listadas na Tabela 2, com os glicocorticoides sendo as drogas de uso mais comum em pediatria. Para sua suspeita, relação temporal entre o início da medicação e o aparecimento da neutrofilia deve ser estabelecida, bem como a normalização dos valores de neutrófilos com a retirada da mesma.

 

Outras causas

portalped - divisor cadeado

Está gostando desse texto?

Cadastre-se gratuitamente no PortalPed para ler o restante da matéria!

 

 

Mostrar mais

Antonio Junior

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp.

Artigos Relacionados

Botão Voltar ao topo