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Holliday-Segar ou solução isotônica para terapia de manutenção? Você está atualizado?

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Atualize seu procedimento de terapia de manutenção fluídica endovenosa com as evidências científicas mais recentes em Pediatria.

 

Em maio de 1957,  Malcolm A. Holliday e William Segar publicaram na Pediatrics o trabalho The maintenance need for water in parenteral fluid therapy, mudando por várias décadas o ensino e a prática pediátrica. Entretanto, a evolução da Ciência e das pesquisas vêm demonstrando que, após 60 anos, devemos fazer algumas adaptações na maneira como prescrevemos a terapia de manutenção endovenosa de nossos pacientes. Querem saber mais? Confiram essa revisão que fizemos sobre o assunto.

 

O objetivo da terapia de manutenção fluídica endovendosa é preservar a volemia e o equilíbrio eletrolítico do paciente que não consegue se alimentar. Ela deve ser capaz de repor as perdas diárias do organismo que ocorrem devido aos processos fisiológicos como diurese, sudorese, evacuação, respiração e reações metabólicas. Entretanto, devemos levar em consideração o estado metabólico de nosso paciente, pois as necessidades e o equilíbrio hormonal e químico do corpo variam consideravelmente no paciente adoecido, especialmente naqueles que necessitam de internação hospitalar — e, ainda mais, naqueles gravemente enfermos em terapia intensiva [1].

O uso do soro de manutenção proposto por Holliday e Segar preconiza a utilização de 100 mL de água e 3 a 3,5 mEq de sódio a cada 100 kcal, necessidades essas estabelecidas no estudo feito na década de 50 e em crianças saudáveis.
Desde os anos 50, a Ciência evoluiu muito. Devemos fazer algumas adaptações na maneira como prescrevemos a terapia de manutenção endovenosa de nossos pacientes.

Aprendi, quando estudei pediatria, a calcular um soro de manutenção para uma criança de 10 kg, por exemplo, desta forma: 1.000 mL de soro glicosado, com 30 a 35 mEq de sódio (ou mmol, já que, no caso do sódio, 1 mEq = 1 mmol). Você também? Bom, em primeiro lugar, vejam que essa regra não está totalmente de acordo com o proposto, pois estamos longe de ofertar a necessidade calórica correta pela regra. Em segundo lugar, quem nunca viu uma criança recebendo um soro prescrito dessa forma por mais de 24/48 horas desenvolver hiponatremia? Todo o mundo viu e a literatura documentou! E, às vezes, com consequências sérias, como convulsão e encefalopatia.

Não iremos discutir neste artigo todos os mecanismos envolvidos na hiponatremia, pois seria uma discussão muito extensa, mas devemos saber que, especialmente nas crianças internadas e gravemente doentes, o surgimento da hiponatremia é multifatorial. Ela está relacionada a fatores como:

  • grande aporte hídrico,
  • baixo aporte de sódio,
  • alteração da função renal e desequilíbrio dos mecanismos de reabsorção de água e sódio,
  • alteração dos níveis de hormônio antidiurético e peptídeo natriurético atrial,
  • hipervolemia,
  • alteração da permeabilidade capilar, entre outros.

Ou seja, é utópico dizer que fazer a adequação da terapia de manutenção que discutiremos a seguir irá resolver a questão da hiponatremia do doente internado. Nossa intenção é apenas demonstrar que os estudos mais recentes nos mostram que é seguro e mais eficaz ofertamos mais sódio ao nossos paciente que recebem soro de manutenção durante o período de jejum.

 

Selecionamos, abaixo, algumas das principais revisões e suas conclusões.

 

PRINCIPAIS EVIDÊNCIAS DE RECENTES PUBLICAÇÕES

Isotonic versus hypotonic saline solution for maintenance intravenous fluid therapy in children: a systematic review.
Padua et al., Pediatric Nephrology, 2015
(Metanálise – 11 trabalhos randomizados, controlados, 1095 crianças)

As evidências atuais não apoiam a prática corrente de prescrição de solução salina hipotônica como terapia de manutenção endovenosa para crianças hospitalizadas. Apesar de não haver nenhum composto ideal para uso endovenoso para todas as crianças, o uso de solução salina isotônica parece ser a escolha mais segura quando prescrevemos uma terapia de manutenção endovenosa para a população pediátrica geral internada.

 

Isotonic saline solution as maintenance intravenous fluid therapy to prevent acquired hyponatremia in hospitalized children. Troster et al., Jornal de Pediatria, 2011

As evidências indicam que a tradicional recomendação de Holliday & Segar quanto à fluidoterapia de manutenção para crianças doentes e hospitalizadas merece ser reconsiderada, em virtude das evidências sobre os efeitos adversos dela advindos, assim como dos melhores resultados obtidos com o emprego das soluções isotônicas.

 

Intravenous maintenance fluid therapy in children.
Sarah McNab. Journal of Paediatrics and Child Health, 2015

As pesquisa recentes em pediatria devem levar a uma mudança significativa na maneira de prescrever soro de manutenção endovenoso: o uso de uma solução isotônica, com concentração de sódio semelhante ao do plasma, deve ser adotado na maioria das crianças. Existem diversas opções de soluções a serem consideradas, porém uma solução balanceada, com menos cloreto do que sódio, deve ser mais apropriada. Numa criança sem sinais de desidratação, uma taxa de infusão menor do que a habitualmente recomendada deve ser considerada. A prescrição do fluido de manutenção deve ser considerada como uma prescrição de medicamento, assim como deve-se acompanhar seus benefícios e efeitos colaterais. A monitorização regular e a adequação da terapia fluídica são essenciais para garantir a segurança das crianças recebendo terapia de manutenção endovenosa.

 

140 mmol/L of sodium versus 77 mmol/L of sodium in maintenance intravenous fluid therapy for children in hospital (PIMS): a randomised controlled double-blind trial.
Sarah McNab et al., Lancet, 2015

O uso de um fluido de manutenção isotônico, com uma concentração de 140 mmol/L de sódio, demonstrou um risco menor de hiponatremia, sem aumentar o aparecimento de efeitos colaterais quando comparado com um fluido com 77 mmol/L de sódio. Sendo assim, o fluido de manutenção isotônico deve ser usado como terapia de manutenção da hidratação em crianças.

Mas afinal, o que é solução isotônica?

Quando falamos de aporte de sódio, a solução isotônica é aquela que oferece uma concentração de sódio semelhante ao do plasma, ou seja, entre 135 e 145 mmol/L de sódio. Normalmente, falamos de uma solução com 140 mmol/L.

 

Esse estudo do Lancet, publicado em 2015, é o maior trabalho randomizado controlado até o momento na faixa etária pediátrica sobre o uso de solução isotônica para a população geral. Ele levanta diversos pontos a serem discutidos, que são, também, abordados por outros trabalhos. Vamos apresentá-los separadamente, a seguir.

 

PONTOS A SE LEVAR EM CONSIDERAÇÃO

O uso de solução isotônica causa hipernatremia?

Aparentemente, não. Os estudos têm demonstrado que o uso de uma solução isotônica, ou seja, com cerca de 140 mmol/L de sódio, não aumenta o risco de desenvolvimento de hipernatremia. [2]

 

A solução isotônica causa acidose hiperclorêmica.

Lembramos que, dentro do complexo mecanismo de equilíbrio eletrolítico de nosso organismo, ao administrarmos uma carga alta de ânion cloreto, o organismo, naturalmente, excretará o ânion bicarbonato. Assim, poderemos ter acidose metabólica hiperclorêmica, já que o bicarbonato é o principal tampão do organismo.

Cabe aqui fazer uma importante ressalva: ainda não há uma solução isotônica de consenso para ser usada em pediatria. Tem-se buscado por uma solução balanceada, com uma carga menor de cloreto, por exemplo. Neste estudo do Lancet, os pesquisadores utilizaram Plasmalyte 148, com glicose 5%. Não encontraram, dessa maneira, aumento da incidência da acidose hiperclorêmica, reiterando os resultados de outros estudos.

O ideal, portanto, seria seguirmos o conselho da Dra. Sarah McNab, e acompanharmos de perto o estado clínico e laboratorial dos pacientes recebendo terapia de manutenção endovenosa e considerando-a como um medicamento, com todos os riscos e efeitos colaterais envolvidos.

 

A solução isotônica diminui a duração do acesso venoso/causa flebite.

Claro que o teor aumentado de cloreto de sódio na solução aumenta a sua osmolaridade. Devemos, sim, estar atentos a esse problema. Tanto é assim que, nesse estudo do Lancet, os pesquisadores excluíram os pacientes menores, que necessitariam de uso de um aporte de glicose maior do que 5%, pois isso tornaria a osmolaridade muito alta e até proibitiva para utilização dessa solução num acesso venoso periférico.

Feita essa ressalva, o estudo não encontrou diferenças no número de perdas de acessos venosos entre os grupos que receberam solução isotônica e hipotônica.

 

O uso de solução isotônica causa hipervolemia?

Isso também parece estar sendo refutado pelos estudos. Não há diferença estatística nesse sentido, quando comparado ao uso de solução hipotônica.

 

A solução isotônica deve ser utilizada para todas as crianças?

soro intravenoso pediatriaDefinitivamente não. Cada vez mais, a individualização da terapia de manutenção endovenosa tem sido foco de discussão. Pacientes com insuficiência renal — em especial os que necessitam substituição renal —, assim como pacientes em pós-operatório de neurocirurgia (nos quais são frequentes os distúrbios da natremia), ou pacientes com doenças que causam desequilíbrio dos níveis de sódio (como hiperplasia adrenal congênita ou síndrome de Barter, entre outros), necessitam de uma adequação mais intensa do aporte hidroeletrolítico a ser ofertado.

Entretanto, para a grande maioria dos pacientes pediátricos admitidos nas enfermarias, prontos-socorros e unidades de terapia intensiva, e que, por diversos motivos — especialmente a alteração da secreção do hormônio antidiurético — apresentam desequilíbrio no mecanismo de regulação da natremia, está bastante documentado na literatura que o uso de solução hipotônica, com 30–50 mmol/L de sódio, como proposto por Holliday e Segar na década de 50, aumenta o risco de aparecimento de hiponatremia iatrogênica e suas complicações, como edema cerebral, convulsões e até óbito. [4]

Fazendo as considerações já citadas, é fortemente recomendável que utilizemos uma solução isotônica, exceto nos seguintes casos:

  • faixa etária neonatal e de outras crianças que necessitem aporte aumentado de glicose (o que aumenta muito a osmolaridade do soro para ser utilizado em veia periférica),
  • pacientes portadores de condições que alteram o equilíbrio hidroeletrolítico normal,
  • pacientes portadores de distúrbios de natremia à entrada e
  • pacientes portadores de acidose metabólica, especialmente a hiperclorêmica.

Ressaltamos, entretanto, dois pontos:

  • somente o uso do cloreto de sódio não parece ser o ideal, pois oferta uma quantidade alta de cloreto e
  • uma solução balanceada de consenso ainda não existe.[3]

 

Como chegamos a uma solução isotônica?

Lembramos que a quantidade de sódio nas soluções que habitualmente utilizamos são:

  • NaCl 0,9%: 154 mmol/L ou 0,154 mmol/mL
  • NaCl 10%: 1.700 mmol/L ou 1,7 mmol/mL
  • NaCl 20%: 3.400 mmol/L ou 3,4 mmol/mL

Sendo assim, exemplos de solução seriam:

  • 500 mL de SG 5% + 41 mL de NaCl 10%
  • 500 mL de SG 5% + 20,5 mL de NaCl 20%

 

 

 

NOSSA CONCLUSÃO É A DE QUE…

A terapia de manutenção com 30–50 mmol/L de sódio, conforme proposto por Holliday e Segar, deve, de uma maneira geral, ser abandonada.

Devemos tender a prescrever uma solução com cerca de 140 mmol/L de sódio, pois é mais segura e não parece trazer malefícios ao doente [Grau de Recomendação I-B]. Devemos analisar individualmente cada caso e tratar a prescrição da terapia de manutenção fluídica como se fosse a prescrição de um medicamento, monitorando de perto seu uso.

Enquanto uma solução ideal não é encontrada, podemos utilizar o cloreto de sódio, amplamente disponível em todas as unidades de saúde. Devemos ter atenção especial para a elevação da cloremia e desenvolvimento de acidose, fazendo adequação da terapia o mais cedo possível. Não devemos utilizar a solução isotônica nos casos já citados acima.

Principalmente, devemos lembrar que o soro de manutenção, ou soro basal, deve ser utilizado apenas pelo menor período possível. Deve ser mantido somente enquanto o uso da via enteral não seja possível. Caso seja previsto um jejum prolongado, precisamos considerar precocemente o uso de nutrição parenteral. Caso a via enteral esteja disponível, ela deve ser a preferida.[3]

Sabemos de grandes serviços que utilizam uma solução isotônica como fluido de manutenção, como o Royal Children’s em Melbourne, a Santa Casa de São Paulo, entre outros. E você? Como a terapia de manutenção é prescrita em seu serviço? Opine, comente — compartilhe conhecimento!

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Dr. Sidney Volk

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp. Membro do corpo editorial do PortalPed.

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