Otorrinolaringologia

Síndrome de Down: por que acompanhar com o Otorrinolaringologista?

Entenda por que é fundamental que otorrinolaringologistas acompanhem o paciente com SD, evitando complicações comuns da Síndrome

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Já foram publicados no PortalPed dois excelentes artigos a respeito da Síndrome de Down:

Todavia, este assunto está longe de ter sido discutido por completo. A frequência dessa síndrome é estimada em 1/700 nascimentos, possuindo ocorrência universal e apresentando-se em todas as classes sociais e etnias. Sendo assim, há a necessidade de constante atualização e de um trabalho multidisciplinar diante desses pacientes.

No texto de hoje, entenderemos a importância do acompanhamento do paciente com Síndrome de Down também pelo Otorrinolaringologista.

 

SÍNDROME DE DOWN: CARACTERÍSTICAS GERAIS

Lembramos que a Síndrome de Down (SD) é uma cromossomopatia cujo quadro clínico é explicado por um desequilíbrio presente na constituição dos cromossomos. A sua etiologia está ligada a um excesso de material genético proveniente de um cromossomo extra, o 21, devido o processo da não disjunção cromossômica.

Os fenótipos mais comuns no paciente com SD são:

  • comprometimento neuropsicomotor,
  • hipotonia muscular,
  • fendas palpebrais oblíquas,
  • braquicefalia,
  • achatamento occipital,
  • hiperextensão articular,
  • mãos largas e dedos curtos,
  • clinodactilia do quinto quirodáctilo,
  • baixa implantação auricular,
  • pregas epicânticas e
  • sulco simiesco. 1
Em geral, os recém-nascidos com Síndrome de Down apresentam 500g a menos em comparação com recém-nascidos sem a síndrome, com maior prevalência de baixo peso. Possuem históricos de internações mais prolongadas, infecções de vias aéreas superiores recorrentes, pneumonias de repetição, alterações intestinais, hipotireoidismo, cardiopatias, entre outras.1, 2

A SD corresponde a 18% das deficiências intelectuais em centros de reabilitação do Brasil. Além disso, caminha com diversas repercussões e comorbidades, o que torna o cuidado multiprofissional a esses pacientes ainda mais importante.

Em razão de certas alterações clínicas que os pacientes com Síndrome de Down apresentam, vários problemas de saúde só podem ser corrigidos por procedimentos cirúrgicos. Diversas anomalias congênitas estão intimamente ligadas à trissomia do 21. Análises comparativas mostram que pacientes cardiopatas e com Síndrome de Down submetidos à cirurgia cardíaca têm maior incidência de diversas complicações pós-operatórias – entre elas, de via aérea e infecções graves –, porém a prevalência da mortalidade é semelhante à dos pacientes não sindrômicos. 3

 

CORRELAÇÃO ENTRE CARDIOPATIA E PROBLEMAS OTORRINOLÓGICOS

A cardiopatia congênita acomete entre 40% e 60% dos pacientes com SD, mas o tratamento clínico e cirúrgico aumentou a sobrevida destes pacientes nas últimas décadas. Uma das complicações possíveis de acontecer após a cirurgia cardíaca é uma disfunção nas pregas vocais. As causas desse problema podem ser:

  •  trauma direto nas pregas vocais durante a intubação endotraqueal e, eventualmente, uma insuficiência respiratória após a extubação, sendo necessário reintubação;
  • trauma durante o intra-operatório no nervo laringeo recorrente, à esquerda, desencadeando a paralisia da prega vocal ipsilateral, à esquerda. Esta condição pode se resolver espontaneamente dentro de meses, mas, em casos raros e bilaterais, pode levar à morbidade permanente. 2, 3

vias aereas humanas

Estudos prévios observaram que crianças com Síndrome de Down têm vias aéreas menores do que outras crianças, não só na região da subglote, mas também no diâmetro dos lumens traqueais. Isso é um importante fator de risco para distúrbios respiratórios e para o aumento de estridor pós-extubação. Assim, a literatura anestésica sugere o uso de um tubo endotraqueal menor nos portadores de SD e a idade é considerada o fator mais confiável na predição do tamanho do tubo endotraqueal. A intubação inicial de uma criança com Síndrome de Down deve ser realizada com um tubo endotraqueal pelo menos dois tamanhos menores do que seria usado em uma criança da mesma idade sem a trissomia do 21.

A importância do estridor pós-extubação nessas crianças é, frequentemente, subestimada, e merece considerações especiais para o sucesso no manejo das vias aéreas nos pacientes com trissomia do 21. É necessária compreensão dos fatores significativos para o desenvolvimento do estridor para que se possa, assim, evitá-los. 1, 4

Todo cuidado é necessário durante uma intubação oro/nasotraquel para evitar um trauma potencial na via aérea e suas complicações. 1, 4

Segundo a literatura internacional, cerca de 40 a 80% dos pacientes com SD têm algum distúrbio do sono, que pode ser caracterizado, além da apneia obstrutiva do sono, pela agitação ao longo da noite (despertares frequentes, sudorese, posições incomuns para o sono), ronco, enurese, engasgos. A Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) é razão comum para encaminhamento de crianças com Síndrome de Down pelo pediatra para o otorrinolaringologista. 1, 5

 

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SD e Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono

Pacientes pediátricos com SAOS moderada a grave têm como intervenção cirúrgica mais comum a adenoamigdalectomia, tanto em pacientes sindrômicos, quanto em não-sindrômicos. É sabido que a maioria dos pacientes com trissomia do 21 e SAOS grave pode apresentar sintomas residuais após a intervenção cirúrgica.

Os motivos da síndrome da apneia-hipopnéia obstrutiva do sono são multifatoriais (hipotonia muscular, alterações orofaciais e da arcada dentária, hipertrofia de tecidos moles das vias aéreas, alterações neurológicas). 5

Aos 4 anos de vida da criança com SD, torna-se necessária a realização de uma polissonografia, a qual também pode ser realizada antes (até mesmo em bebês) ou em qualquer idade, caso haja sintomas. Assim, durante uma consulta médica, pediátrica ou otorrinolaringológica, é essencial perguntar ativamente sobre o sono da criança. 1, 5

Embora a amigdalectomia e a adenoidectomia possam ser realizadas de forma segura em crianças com síndrome de Down, a taxa de complicações respiratórias pós-operatórias nesses pacientes é maior. E há recomendações de que fiquem internados no hospital, para monitoramento, durante a noite após terem sido submetidas a essas cirurgias.

 

O OTORRINO E A SÍNDROME DE DOWN

otoscopia exame pediatricoOutras comorbidades sistêmicas relacionadas à síndrome podem ser componentes para o surgimento de mais distúrbios otorrinolaringológicos nessas crianças, como imunodeficiências desencadeando otites recorrentes e suas complicações, doenças autoimunes desencadeando perdas auditivas, além do risco da presbiacusia precoce, atraso de linguagem, entre outros.

A SD também predispõe o surgimento de alterações auditivas. É fundamental para o desenvolvimento global da criança a identificação precoce dessas alterações, sendo a Triagem Auditiva Neonatal o primeiro passo para que ela ocorra. Em 2 de Agosto de 2010, foi sancionada a lei federal nº 12.303, que tornou obrigatória a realização gratuita do exame denominado Emissões Otoacústicas Evocadas em todas as crianças nascidas nas dependências de hospitais e maternidades. E para os recém-nascidos com algum fator de risco para perda auditiva e/ou alguma síndrome genética, também é aconselhável a realização do PEATE (Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico), também conhecido pela sigla na língua inglesa BERA (Brainstem Evoked Response Audiometry), já nos primeiros meses de vida, para avaliar a integridade da via auditiva central. 6, 7

Existem vários indicadores de risco para perda auditiva congênita ou de início tardio. Dentre eles estão as síndromes genéticas que usualmente expressam deficiência auditiva, sendo a SD uma delas. A literatura mostra uma alta incidência de perda auditiva uni ou bilateral em crianças com síndrome de Down, variando entre 60- 80%. 7

Segundo diretrizes do Ministério da Saúde, pacientes com SD precisam ser submetidos à triagem auditiva completa e ao monitoramento do desenvolvimento da audição e da linguagem. Tais exames são aconselháveis:

  • ao nascer, aos 6 meses e aos 12 meses de vida;
  • semestralmente, do primeiro ano até os 5 anos de idade;
  • anualmente ao longo do desenvolvimento. 7

Podem existir ainda características morfológicas nos lactentes que predispõem ao surgimento de alterações auditivas condutivas, e isso é ainda mais agravado nos pacientes SD, pois eles podem apresentar estenose ou estreitamento importante do meato acústico externo, palato curto, estreitamento da nasofaringe e orofaringe, atraso do desenvolvimento do sistema imunológico e malformações da tuba auditiva.1, 7

 

Tuba auditiva

A tuba auditiva tem atuação importante na equalização da pressão dentro do ouvido médio com o ambiente externo. Porém, nos pacientes com SD, ela pode ser mais cilíndrica e estreita, e pode apresentar uma inserção anormal na nasofaringe. Tais características, associadas à hipotonia geral e à disfunção do músculo tensor do véu palatino (responsável por abrir e fechar a tuba auditiva), podem resultar em colapso/colabamento da tuba. Isso propicia pressão negativa dentro da cavidade timpânica, facilita a entrada de secreção na orelha média a partir das fossas nasais e dificulta a saída da secreção. Como consequência, desencadeia otite média serosa/mucóide crônica, responsável por perda auditiva condutiva. 1, 6, 7

 

Orelha interna

Anormalidades congênitas da orelha interna não são frequentes, porém os indivíduos com SD tendem a apresentar a cóclea anatomicamente menor em comparação a crianças com desenvolvimento típico. É conhecido que, a partir dos 20 anos de idade, pode ocorrer uma degeneração coclear precoce, denominada de “presbiacusia precoce”, e de instalação progressiva, cujo início do prejuízo pode estar associado a otites médias recorrentes. 6, 7

Lembramos que perdas auditivas associadas com o déficit cognitivo da síndrome podem…

  • agravar o desenvolvimento da linguagem e impactar a comunicação e expressão oral do indivíduo;
  • interferir na estimulação sonora do sistema nervoso auditivo central, que, a médio prazo, comprometerá o processamento auditivo central.

Além disso, a secreção na orelha média pode provocar zumbido, tinnitus, distorcer a percepção sonora e, consequentemente, dificultar a percepção dos sons da fala. 1, 6, 7

 

Disfagia

Em decorrência das alterações morfológicas da síndrome, com comprometimento motor e funcional, além da alta chance de exposições frequentes do paciente a cirurgias, internações prolongadas e complicações (ventilação, infecções, uso de sonda para alimentação, entre outros), a disfagia pode acometer com maior frequência as crianças com SD. Como consequência, causa déficits nutricionais, desidratação, risco de aspiração traqueal e pneumonias aspirativas. A disfagia dificulta a alimentação por via oral de forma segura. 8

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas condições contribuem para diminuir a expectativa de vida do paciente com Síndrome de Down:

  • doenças imunológicas,
  • doenças gastrintestinais,
  • doenças metabólicas,
  • doenças hormonais,
  • anomalias congênitas e
  • o número de internações.

Todavia, nos últimos anos, a expectativa de vida desses indivíduos aumentou, graças às melhorias nos cuidados familiares e à estimulação multiprofissional, o que ajuda na reabilitação da criança com Down. Os profissionais também auxiliam no desenvolvimento mental, motor e linguístico, proporcionando maior qualidade de vida, com destaque para o médico, fonoaudiólogo, o terapeuta ocupacional e o fisioterapeuta, além dos cuidadores.

Existem inúmeras particularidades anatômicas e funcionais do paciente com SD e o otorrinolaringologista deve estar envolvido desde o primeiro ano nesse programa de acompanhamento clinico, para detecção precoce de anormalidades e intervenções oportunas.

 

 

Referências Científicas

  1. Mitchell, Ron B, Call, Ellen, Kelly, James. Ear, nose and throat disorders in children with Down syndrome. Laryngoscope; 113(2): 259-63, Feb. 2003.
  2. Bermudez, Beatriz Elizabeth Bagatin Veleda, Medeiros, Sandra Lira, Bermudez, Mariane Bagatin, Novadzki, Iolanda Maria, & Magdalena, Neiva Isabel Rodrigues. (2015). Down syndrome: Prevalence and distribution of congenital heart disease in Brazil. Sao Paulo Medical Journal133(6), 521-524. Epub December 08, 2015. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/1516-3180.2015.00710108
  3. Ferrín, Liliana María, Atik, Edmar, Ikari, Nana Miura et al. (1997). Defeito Total do Septo Atrioventricular. Correlação Anatomofuncional entre Pacientes com e sem Síndrome de Down. São Paulo. Arq Bras Cardiol, 69(1), 19-23. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/abc/v69n1/3738.pdf
  4. Mitchell, Ron B, Call, Ellen, Kelly, James. Diagnosis and therapy for airway obstruction in children with Down syndrome. Arch Otolaryngol Head Neck Surg; 129(6): 642-5, Jun. 2003.
  5. Eduard Esteller. Obstructive Sleep Apnea-Hypopnea Syndrome in Children: Beyond Adenotonsillar Hypertrophy. Acta Otorrinolaringologica (English Edition), Volume 66, Issue 2, March–April 2015, Pages 111-119. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.otorri.2014.05.001
  6. Biasus, Marcela Renostro, Almeida, Carolina Klippel, Pagnossin, Débora Frizzo, Neumann, Ruy Xavier. (2014). Caracterização audiológica de adultos com Síndrome de Down. Distúrb Comun, São Paulo, 26(2), 355-364. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/dic/article/view/16744/14649
  7. Carrico, Barbara, Samelli, Alessandra Giannella, Matas, Carla Gentile, Magliaro, Fernanda Cristina Leite, Carvallo, Renata Mota Mamede, Limongi, Suelly Cecília Olivan, & Neves-Lobo, Ivone Ferreira. (2014). Avaliação auditiva periférica em crianças com síndrome de Down. Audiology – Communication Research19(3), 280-285. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S2317-643120140003000012
  8. Fraga, Deborah Fick Böhm, Pereira, Karine da Rosa, Dornelles, Sílvia, Olchik, Maira Rosenfeld, & Levy, Deborah Salle. (2015). Avaliação da deglutição em lactentes com cardiopatia congênita e síndrome de Down: estudo de casos. Revista CEFAC17(1), 277-285. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201514613
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Dra. Janaina Resende

Dra. Janaina Resende é médica especialista em Otorrinolaringologia Pediátrica. Além do cuidado especial na área infantil, com pacientes sindrômicos e com anomalias craniofaciais, também realiza atendimentos de adultos e idosos. Possui atuação em distúrbios da deglutição e atuação cirúrgica nas vias aéreas superiores (ouvido, nariz e garganta).
CONSULTÓRIO SÃO PAULO: Clínica Sementes. Rua Bento de Andrade, 58, Jardim Paulista. São Paulo – SP. Telefone: (11) 3884-8984 / (11) 99833-8030 (whatsapp)
CONSULTÓRIO CAMPINAS: Avenida Andrade Neves, 707, Casarão do Café – Sala 302 (3º andar). Bairro Botafogo. Campinas – SP. Telefone: (19) 3254-4011
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