Diagnóstico Tardio do Fenótipo do Espectro do Autismo em Mulheres
Quais são as razões pelas quais o sexo feminino apresenta maiores chances de não ter as características do autismo reconhecidas na infância?

Há subdiagnóstico e diagnóstico tardio do autismo em meninas e em mulheres, notadamente naquelas com quociente de inteligência (QI) normal ou acima da média. O estudo que discutimos a seguir investigou as razões pelas quais o sexo feminino apresenta maiores chances de não ter as características do autismo reconhecidas na infância, além do impacto desse não reconhecimento na vida de mulheres que receberam diagnóstico tardio.
O ESTUDO
- The Experiences of Late-diagnosed Women with Autism Spectrum Conditions: An Investigation of the Female Autism Phenotype
- Sarah Bargiela, Robyn Steward, William Mandy
- Journal of Autism and Developmental Disorders, October 2016, Volume 46, Issue 10, pp 3281–3294.
INTRODUÇÃO
A Condição do Espectro do Autismo (CEA), conhecida no meio científico como “Transtorno do Espectro do Autismo” (TEA), é uma síndrome do neurodesenvolvimento caracterizada por dificuldades nos seguintes aspectos:
- reciprocidade social,
- comunicação social,
- flexibilidade e processamento sensorial.
Em comparação com os homens, as mulheres que apresentam a CEA apresentam risco muito maior de não serem diagnosticadas, e, quando há o diagnóstico, este costuma ocorrer mais tardiamente.
Há evidências empíricas de que meninas e mulheres com a CEA teriam maior motivação social e maior capacidade para construir amizades, menos comportamentos externalizantes (hiperatividade, impulsividade, problemas de conduta), seriam mais vulneráveis a problemas de internalização (ansiedade, depressão, transtornos alimentares), além de apresentarem menos comportamentos repetitivos e estereotipados. Porém, as pesquisas sobre essas diferenças estão em um estágio inicial.
A fim de avançar no estudo dessas diferenças de gênero, o artigo se baseou em três pontos principais:
- Investigação da natureza do fenótipo do autismo feminino e de como ele colabora para que a CEA passe despercebido;
- Recrutamento de mulheres com a CEA e cujas dificuldades não foram reconhecidas na infância e no início da adolescência;
- Avaliação indutiva das entrevistas semiestruturadas feitas a mulheres com a CEA (nove presencialmente, quatro por videoconferência através da internet, uma por telefone): análise estrutural.
MÉTODOS
Participaram 14 mulheres com a CEA, identificadas pela letra “P” seguidas por uma numeração única (P01 a P14 ® Veja na Tabela 1) e que preencheram os seguintes critérios de inclusão:
- Idade entre 18 e 35 anos;
- Diagnóstico da CEA realizado por um profissional habilitado (psiquiatra, psicólogo clínico) no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido;
- Diagnóstico da CEA ocorrido no final da adolescência ou na idade adulta (15 anos ou mais);
- Diagnóstico da CEA ocorrido dentro de intervalo de 10 anos da participação no estudo;
- Viver no Reino Unido;
- Ausência de deficiência intelectual (QI acima de 70) avaliada pelo Wechsler Test for Adult Reading (WTAR);
- Uso do General Health Questionnaire-12 (GHQ-12);
- Uso da Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS-A e HDS-D).
Participante | Idade no momento da entrevista | Idade ao diagnóstico | QI | AQ-10 (ponto de corte = 6) | Emprego |
P01 | 23–26 anos | 19–22 anos | 122 | 9 | Ilustrador |
P02 | 23–26 anos | 15 a 18 anos | 115 | 6 | Estudante em tempo integral |
P03 | 27-30 anos | 27-30 anos | 110 | 8 | Profissional de saúde |
P04 | 22–26 anos | 15 a 18 anos | 113 | 10 | Acompanhante terapêutico |
P05 | 22–26 anos | 22-25 anos | 122 | 10 | Voluntário |
P06 | 27-30 anos | 23–26 anos | 124 | 9 | Estudante em tempo integral |
P07 | 19–22 anos | 19–22 anos | 124 | 9 | Artista fino |
P08 | 22–26 anos | 19–22 anos | 85 | 10 | Profissional de saúde |
P09 | 27-30 anos | 19–22 anos | 108 | 8 | Administrador |
P10 | 27-30 anos | 23–26 anos | 117 | 9 | Voluntário |
P11 | 27-30 anos | 27-30 anos | 108 | 8 | Mãe em tempo integral |
P12 | 27-30 anos | 19–22 anos | 115 | 8 | Estudante em tempo integral |
P13 | 23–26 anos | 19–22 anos | 92 | 10 | Voluntário |
P14 | 27-30 anos | 23–26 anos | 110 | 9 | Atleta |
Tabela 1 – Características da amostra. A idade exata no momento da entrevista e no momento do diagnóstico não foram fornecidas para proteger a confidencialidade do participante. AQ-10 = versão resumida do Quociente do Espectro do Autismo
RESULTADOS
Ansiedade, depressão e bem-estar na amostra
A média do escore da HADS-A (ansiedade) foi acima do ponto de corte clínico recomendado, e apenas uma participante não pontuou nesta faixa. O escore médio da HADS-D (depressão) foi abaixo do limiar clínico, com três participantes pontuando na faixa clínica. O escore médio do GHQ-12 foi abaixo do ponto de corte indicativo de transtorno mental. Três participantes pontuaram na faixa de “sofrimento” e mais dois caíram na faixa “grave”, indicando que apresentavam dificuldades psicológicas graves no momento da entrevista.
Análise qualitativa: temas e subtemas
Os dados relevantes das transcrições das entrevistas semiestruturadas foram organizados em quatros temas principais, além de subtemas (Veja na Tabela 2 a seguir):
Tema | Subtema (frequência) |
“Você não é autista” | Rotulada com diagnósticos que não incluíssem o autismo (12) Estereótipos profissionais inúteis do autismo (12) Calma na escola, então passou despercebida: “Eu deveria ter queimado mais carros” (6) Incompreendida, sem suporte ou culpada pelos professores (8) Os custos de um diagnóstico tardio (8) |
Fingindo ser “normal” | “Vestindo uma máscara” (8) Aprendendo comportamentos sociais da TV, de livros e de revistas (6) Mimetismo social (5) Os custos de mascarar (5) |
Da passividade para a assertividade | Por favor, apazigue, evite conflitos (7) Aprisionamento em relacionamentos abusivos ou em situações de risco (8) Vítima de abuso sexual (9) Aprendendo a ser assertiva (8) |
Forjar uma identidade sendo mulher com a CEA | Pressões da sociedade: o que se espera das mulheres jovens (11) Amizades: incerteza e intensidade (12) Difícil ser amiga de meninas neurotípicas (8) Mais fácil ser amiga de garotos (7) Amizades e suporte online (7) Interesses definem a identidade e a autoconfiança (7) |
Tabela 2 – Análise estrutural, incluindo frequência dos temas.
CONCLUSÕES
Resumidamente, as prioridades da pesquisa do autismo com base em entrevistas com pessoas com a CEA enfatizaram a necessidade de entender por que as mulheres com ASC “passam batidas”, assim como identificar maneiras de combater, na prática clínica atual, essa dificuldade baseada no gênero:
- As pesquisas para definição do fenótipo do autismo feminino deverão incluir o desenvolvimento de medidas de camuflagem, para que esse fenômeno possa ser estudado quantitativamente, aumentando a compreensão de sua prevalência e os efeitos no diagnóstico e no bem-estar.
- Os níveis de conhecimento sobre a CEA e as necessidades de treinamento de uma série de profissionais da saúde e da educação, incluindo aqueles que não são especializados na CEA, devem ser investigados. Isso criaria o terreno para o desenvolvimento de programas de treinamento sobre o fenótipo do autismo feminino, para melhorar o reconhecimento e o encaminhamento para serviços adequados.
- O estudo apontou que as mulheres com a CEA apresentariam maior risco de serem abusadas sexualmente, e essa descoberta foi corroborada em literaturas científicas e autobibliográficas. Mais pesquisas são necessárias para testar as ideias sugeridas pelos autores desse artigo acerca das causas que tornam essas mulheres vulneráveis à exploração, para que programas específicos de treinamento para mulheres com a CEA as auxiliem a permanecer seguras.