Doença Mão-Pé-Boca: diretrizes para diagnóstico e tratamento
Entenda as causas, os sintomas e aspectos clínicos da Doença Mão-Pé-Boca e veja orientações sobre os tratamentos mais indicados.
- Artigo de revisão originalmente publicado no Boletim Epidemiológico Paulista, Vol 15, nº 173. Reprodução autorizada.
As principais manifestações clínicas da DMPB são:
- febre,
- erupção cutânea em mãos e pés e
- vesículas na boca.
Particularmente por ocasião de surtos da doença, quadros clínicos mais graves podem ocorrer, como meningite, encefalite, paralisia flácida aguda, miocardite, pericardite, pancreatite, alterações do sistema nervoso autônomo e, mais raramente, falência cardiopulmonar e óbito[1-3]. Fatores ambientais, socioeconômicos e imunológicos proporcionam a circulação dos EV de modo sazonal[1].
No intuito de subsidiar os profissionais de saúde da assistência e vigilância epidemiológica do Estado de São Paulo no atendimento de casos e na notificação, investigação e controle dos surtos de DMPB, este documento traz orientações relativas à etiologia, epidemiologia, quadro clínico, diagnóstico, tratamento, medidas de prevenção e controle dos surtos. Deste modo, estas orientações permitirão uma melhor integração e fortalecimento dos fluxos e ações frente aos surtos, contribuindo para o monitoramento e conhecimento do comportamento epidemiológico dos EV no território paulista.
DOENÇA MÃO-PÉ-BOCA: AGENTES ETIOLÓGICOS
Os enterovírus são vírus RNA de fita simples, pertencem à ordem Picornavirales, família Picornaviridae, gênero Enterovírus, e possuem grande heterogeneidade genética e fenotípica. A classificação baseia-se nas semelhanças físico-bioquímicas, características epidemiológicas, patogênicas e quadros clínicos. A
evolução das técnicas moleculares permitiu melhor entendimento das relações entre as espécies, levando à frequente readequação taxonômica, como mostrado no Quadro 1 abaixo [4-8].
REVISÃO DA CLASSIFICAÇÃO | BASE TÉCNICA DA CLASSIFICAÇÃO | ESPÉCIES DE INTERESSE QUE SOFRERAM READEQUAÇÃO |
Anterior em Grupos: Poliovírus (PV) Echovírus (E) Coxsackievírus A (CV-A) Coxsackievírus B (CV-B) Enterovírus (EV) | Propriedades físicas, bioquímicas, características epidemiológicas e apresentação clínica | EV-A72, atual Hepatite A |
Atual em Espécies: Poliovírus tipos 1,2,3 Enterovírus A* (EV-A) Enterovírus B* (EV-B) Enterovírus C* (EV-C) Enterovírus D* (EV-D) Enterovírus E à L** (EV-E à EV-L) Rhinovírus A à C** (RV-A à RH-C) | Propriedades moleculares, biológicas e genéticas | Echovírus 22 e 23, atual Paraechovírus 1 e 2, respectivamente Rinovírus RVH-87, atual EV-D68 |
Aspectos Epidemiológicos
Os EV são prevalentes em todo o mundo e possuem relevante potencial para doenças emergentes, dada sua marcada variabilidade genética adaptativa e evolutiva[1].
A primeira caracterização de surto de DMPB ocorreu em 1957, no Canadá, onde foi identificado o vírus coxsackie (CV)[9]. O CV-A16 é um dos sorotipos mais frequentemente relacionados à DMPB, inclusive em São Paulo. Desde 2008, o CV-A6 vem sendo identificado em países do norte da Europa, Estados Unidos e Sudeste Asiático, após sofrer variações genéticas[10]. Em São Paulo, já foram descritos casos/surtos de E-6, E-4 e CV-B3[11-13]. A correlação do EV-A71 com a DMPB ocorreu em surtos na Bulgária em 1975, e no Japão na década de 1980[14]. O EV-A71 é um sorotipo dermatotrópico e neurotrópico, mais virulento e responsável por casos graves[14]. Estudos de soroprevalência e vulnerabilidade têm sido realizados com o intuito de vacinar populações
nas áreas em que EV-A71 apresenta maior morbimortalidade[15].
A DMPB tem distribuição geográfica variável; é endêmica nos países do Sudeste Asiático e Oeste do Pacífico[10,14,15]. A DMPB tem variação temporal, com sazonalidade relacionada ao verão e à época de chuvas[16]. A infectividade da DMPB pode ser comparada à de doenças como difteria, caxumba, poliomielite, com número básico de reprodução de até R0 =30, ou seja, uma pessoa doente é capaz de transmitir a doença para até 30 indivíduos suscetíveis[16-17]. Observa-se alta taxa de ataque em creches – cerca de 30% –, e redução da incidência durante as férias escolares[16]. Em 1998, Taiwan registrou 3% de casos graves, sendo que 20% destes evoluíram para óbito, a maioria deles em crianças menores de cinco anos[2]. A DMPB tem impacto na assistência à saúde, com ocupação de leitos hospitalares. No primeiro trimestre de 2018, 58% dos casos notificados no Vietnã precisaram de internação, evidenciando a necessidade de reorganização dos serviços de saúde para receber esses pacientes[18].
Modo de transmissão da Doença Mão-Pé-Boca
Os EV que causam DMPB se multiplicam nas tonsilas palatinas, na mucosa oral e no trato digestório; são resistentes às variações do pH, passam a barreira gástrica e se multiplicam intensamente no intestino delgado[19].
Dessa forma, a transmissão direta ocorre pela via fecal-oral, por fezes e possivelmente vômitos,
e por secreções de vias aéreas como muco, saliva, gotículas e pelo contato com lesões cutâneas[19].
A transmissão indireta ocorre por meio de superfícies e fômites contaminados, uma vez que os EV podem permanecer em temperatura ambiente sem perder sua viabilidade[19].
Os EV já foram observados no leite materno e a transmissão transplacentária também pode ocorrer[21-22].Ambientes fechados e aglomerados podem contribuir para a persistência da circulação dos EV, e fatores sócio comportamentais facilitam a infecção no período pré-escolar[20].
Período de incubação e de transmissão
O período de incubação é variável, mas geralmente dura de 3 a 7 dias[19].
Os EV permanecem viáveis por até duas semanas em secreções de mucosa oral, e por quatro a oito semanas nas fezes, podendo este período se estender em pacientes imunocomprometidos[23].
Suscetibilidade
Todos os indivíduos sem exposição prévia a determinado EV são suscetíveis, uma vez que a imunidade induzida é sorotipo específica[16]. Há alguma proteção cruzada entre o CV-A16 e o EV-A71 por cerca de dois meses após a infecção[16].
Transferência placentária de IgG para o feto parece proteger de infecções graves, porém não evita a manifestação de DMPB em neonatos[23-24].
Os anticorpos neutralizantes protegem contra a doença mas, quando em baixo título, não previnem a reinfecção pelo mesmo tipo de EV em pessoas imunes, o que contribui para a persistência de sua circulação na população[15,25].
Aspectos clínicos da doença
Os EV são capazes de determinar inúmeras síndromes clínicas. Diferentes sorotipos associam-se a um mesmo sintoma, enquanto um mesmo sorotipo pode causar várias manifestações clínicas, como mostrado no Quadro 2[5].
SÍNDROME CLÍNICA | SOROTIPO |
Poliomielite | PV-1 a 3 |
Neuropatias | EV-A71, CV-B, E |
Conjuntivite hemorrágica | EV-A70, CV-A24 |
Pleurodinia, miopericardite | CV-B1 a 5 |
Insuficiência respiratória | EV-D68 |
Pancreatite | CV-B, EV-A71, CV-A4, CV-A16 |
DMPB | CV-A16, CV-A6, EV-A71 |
A Doença Mão-Pé-Boca se caracteriza por três fases clínicas[27]:
- Pródromo: dois a quatro dias antes do aparecimento do exantema ocorrem febre, adinamia, irritabilidade, prostração, diarreia, vômitos, odinofagia e mialgia.
- Fase aguda: máculas eritematosas em mãos e pés, com vesículas de 2 a 5 mm que regridem sem formação de crostas; lesões aftoides dolorosas na língua, palato, mucosa oral e retrofaringe, que dificultam alimentação e causam desidratação. As lesões persistem por cerca de sete a 10 dias.
- Convalescença: prostração, que pode durar semanas. O descolamento ungueal (onicomadese) tardio (até dois meses após o início dos sintomas) pode ocorrer.28,29
A DMPB é classificada pela Organização Mundial da Saúde[1] de acordo com a sua gravidade em:
- DMPB ou herpangina sem complicações;
- DMPB com acometimento neurológico: meningite asséptica, encefalite, encefalomielite, romboencefalite, síndrome de Guillain-Barré, mielite transversa aguda, paralisia flácida aguda;
- DMPB com alterações do sistema nervoso autônomo (disautonomia);
- DMPB com falência cardiopulmonar: miocardite, edema pulmonar.
Diagnóstico laboratorial da Doença Mão-Pé-Boca