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Surto de Mielite Flácida Aguda nos EUA — o que Sabemos?

A MFA foi descrita como o início agudo de fraqueza dos membros. Exames mostraram lesões na substância cinzenta da medula espinha. O que estaria causando-a?

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Nos últimos meses, notícias sobre o preocupante surto crescente de casos de mielite flácida aguda (MFA) têm sido presença constante nos noticiários nacionais e internacionais.

“Uma condição rara conhecida com mielite flácida aguda (AFM, na sigla em inglês) teria sido registrada em mais de 120 casos documentados em 22 estados americanos neste ano (…)” 1

“(…) até agora, o pouco que se sabe é que o CDC chamou a doença de mielite flácida aguda e que pode ter relação com um surto de enterovírus que ocorreu no país na mesma época em que foram registrados os primeiros casos.” 2

A MFA é uma doença rara, porém séria. Soma cerca de um caso para cada milhão de pessoas. Afeta o sistema nervoso central, especificamente a substância cinzenta da medula espinhal, causando fraqueza da musculatura e dos reflexos inervados pela área afetada.

O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA revela que está investigando minuciosamente os casos de MFA que têm ocorrido desde 2014, quando pela primeira vez notou-se um grande número de casos dessa doença sendo reportados. No último dia 19 de novembro, o CDC anunciou o lançamento de uma força tarefa para investigar causas e tratamentos para pacientes com MFA. 3

 

Mielite flácida aguda: definições

A MFA foi descrita recentemente como o início agudo de fraqueza dos membros, com exames de imagem mostrando lesões na substância cinzenta da medula espinhal (especialmente nos cornos anteriores) sugestivas de mielite anterior.

A inclusão do critério de imagem na definição de caso de MFA teve como objetivo aumentar a especificidade e diferenciar esses casos dos de paralisia flácida aguda (PFA), uma categoria mais ampla de casos epidemiológicos e que, a princípio, é usada para a vigilância do poliovírus. Embora o emprego desse termo (“MFA”) seja novo, a condição clínica que ele descreve não é, uma vez que reúne casos anteriormente descritos como poliomielite, doença pólio-like e paralisia flácida aguda com mielite anterior.

Figura 1 — Achados na ressonância magnética de um paciente pediátrico com mielite flácida aguda. A–D, imagens agudas em paciente de 7 anos do sexo masculino realizadas em 2–3 dias de evolução da doença mostram hiperdensidade em T2 na porção dorsal à direita da ponte (seta branca, A) e hiperdensidade mais mal definida da substância cinzenta central vista mais comumente na fase aguda (setas brancas, B e C; setas pretas, D). E–I, imagens subagudas realizadas na medula do mesmo paciente no 38º dia demonstram retração da hiperintensidade em T2, mas agora acometendo localmente as células do corno anterior (setas pretas, E; setas brancas, F e H) e reforço da raiz nervosa das raízes cervicais ventrais (setas brancas, G) e da causa equina (setas brancas, I). Extraído de Maloney JA et al. MRI Findings in Children with Acute Flaccid Paralysis and Cranial Nerve Dysfunction Occurring during the 2014 Enterovirus D68 Outbreak. Am J Neuroradiol 2015. 4

Déficits assimétricos específicos nos neurônios motores inferiores e lesões longitudinais características da substância cinzenta (predominantemente nos cornos anteriores da medula espinhal) ajudam a distinguir a MFA de outras causas de PFA, incluindo a síndrome de Guillain-Barré, a encefalomielite disseminada aguda (ADEM, do termo em inglês) e a mielite transversa, embora alguma sobreposição de definição de casos epidemiológicos e de achados clínicos exista.

Mais comumente associada ao poliovírus e a outros enterovírus não pólio, a MFA tem sido descrita também em associação com flavivírus endêmicos e epidêmicos neurotrópicos, mais notavelmente o vírus do Nilo Ocidental e o vírus da encefalite japonesa. 5

Figura 2 — Esquema representando os grupos de neurônios motores inferiores nos cornos anteriores da medula. Disponível em https://neupsykey.com/anterior-horn-cell-and-cranial-motor-neuron-disease/. Acesso em 20 de dezembro de 2018

A semelhança com a poliomielite e os números progressivos de crianças afetadas, agravados pela ausência de pistas conclusivas sobre o agente causal, têm levado pais e profissionais de saúde a um estado de constate inquietação naquele país. Em setembro deste ano, num intervalo de poucas semanas, seis crianças no Minnesota e catorze no Colorado contraíram a doença. 6

“A condição pode ser causada por vírus, incluindo os enterovírus e o vírus do Nilo Ocidental, bem como por toxinas do meio ambiente. Assim, as pessoas podem se infectar com esses vírus ou se expor a certas toxinas e então apresentar os sintomas pólio-like da MFA. Mas o CDC ainda não foi capaz de estabelecer qualquer vínculo viral com esse surto — e ninguém consegue entender por quê.” 7 

A disseminação de casos semelhantes no Brasil não foi divulgada nas mídias, nem têm circulado notícias oficiais de aumento dos casos de MFA nas publicações científicas nacionais. Porém, de maneira especulativa, em nossas conversas informais com nossos colegas, temos ouvido com certa frequência relatos do atendimento de casos similares.

 

O que o CDC descobriu desde 2014?

  • A maioria dos paciente com MFA (mais de 90%) tem uma doença respiratória leve ou febre consistentes com infecção viral antes de desenvolverem a MFA;
  • Infecções virais, tais quais aquelas por enterovírus, são comuns, especialmente em crianças, e a maior parte das pessoas se recupera delas. O CDC não entende ainda o porquê de algumas pessoas desenvolverem MFA, enquanto outros se recuperarem bem — algo que continuam investigando;
  • Esses casos de MFA não são causados por poliovírus. Todas as amostras de fezes dos pacientes que apresentaram MFA tiveram resultado negativo para poliovírus;
  • Foram detectados coxsackievírus A16, enterovírus A71 (EV-A71) e enterovírus D68 (EV-D68) no líquido cefalorraquidiano (LCR) de 4 de 484 casos confirmados de PFA desde 2014 nos EUA, o que sugere serem essas as causa desses casos de MFA. Em todos os outros pacientes, não foi detectado nenhum patógeno no LCR;
  • A maior parte dos pacientes apresentou PFA entre agosto e outubro (final do verão e começo da primavera no hemisfério norte), com aumento do incremento de casos a cada dois anos desde 2014. Nos EUA, nesse mesmo período do ano, há circulação de muitos vírus entre a população, incluindo os enterovírus — o que os associa temporalmente com a MFA;
  • Geralmente, os casos de MFA ocorrem em crianças (mais de 90%) e houve registro da doença em 46 dos 50 estados americanos. 8

Em uma matéria publicada no jornal de notícias britânico The Independent de 14 de novembro deste ano6, cita-se que oficiais de saúde do Colorado informaram que “onze dos catorze casos recentes tiveram resultado positivo para o EV-A71 e um para o EV-D68”. Essa informação não condiz com a explicitada acima pelo CDC, cuja última atualização aconteceu em 10 de dezembro de 2018.

 

Relação entre a mielite flácida aguda e o enterovírus D68

O EV-D68 foi descoberto em 1962, após ser isolado a partir de amostras de secreções respiratórias de crianças com pneumonia na Califórnia. O EV-D68 é um enterovírus não pólio com propriedades clínicas e biológicas tão similares aos rinovírus humanos que foi inicialmente classificado como rinovírus 87. Ele se multiplica preferencialmente a 33 °C e se liga primariamente aos receptores de ácido siálico do trato respiratório superior — e, menos comumente, do inferior. É transmitido especialmente por via respiratória e detectado em amostras de secreções respiratórias no início do curso da doença. Não é comumente detectado nas fezes. 5

Em janeiro deste ano, um grupo australiano publicou no periódico Eurosurveillance um estudo (enviado em maio de 2017) que propunha, baseado na evidência de aumento dos casos de surtos de EV-D68 ao redor do mundo, uma relação temporal e geográfica entre os casos de MFA e esse enterovírus. 9

Utilizando-se dos dados disponíveis na literatura, aplicaram os critérios de Bradford Hill — que, em epidemiologia, são os que estabelecem um método rigoroso para averiguar o que se conhece e se desconhece sobre uma relação causal potencial, e que não necessitam ser completamente preenchidos para o estabelecimento da causalidade 5 — para avaliar essa associação. O resultado foi que seis dos nove critérios de Bradford Hill foram totalmente preenchidos e dois parcialmente preenchidos. Apenas o critério de gradiente biológico foi minimamente preenchido, de maneira que tais resultados apoiam a relação epidemiológica causal entre EV-D68 e MFA.

Em fevereiro de 2018, no periódico The Lancet 5, um grupo de médicos da Universidade do Colorado, nos EUA, liderados por um pediatra, com a colaboração de um virologista da Holanda, publicou um artigo (uma “Visão Pessoal”, como é descrito) com as mesmas observações. Observaram que o aumento na circulação de EV-D68 em 2014 e 2016 coincidiu temporal e geograficamente com um aumento dos casos de MFA. Dando força a esse achado, também notaram que, em diversos países ao redor do mundo, houve a identificação do EV-D68 nas secreções respiratórias dos pacientes acometidos por MFA, ainda que na esmagadora maioria dos casos não tenha havido isolamento do vírus nos tecidos afetados ou no LCR e não exista, até o momento, um modelo animal que comprove tal relação, que permanece sem provas concretas.

Tabela 1 — Casos de paralisia flácida aguda ou mileite flácida aguda com identificação do enterovírus D68 em amostras biológicas.

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Antonio Junior

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp.
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