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Encefalite Viral Aguda: definição, diagnóstico e tratamentos

Entenda um dos problemas neurológicos mais complexos para se diagnosticar a determinar as causas. Uma revisão completa sobre as encefalites.

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“No décimo oitavo dia do mês, ele dormiu no banheiro por conta de sua febre. (…) No dia 24, ele estava muito pior e foi levado para fora da cama para ajudar nos sacrifícios (…). No dia 25, ele foi removido para o seu palácio do outro lado do rio, onde ele dormiu um pouco, mas sua febre não diminuiu, e quando os generais entraram em seu quarto ele ficou sem fala e continuou assim no dia seguinte. (…) No dia 28, à noite, ele morreu.”
O trecho acima, extraído dos escritos de Plutarco, narra os fatos que permearam a morte prematura de Alexandre, o Grande, no século IV a.C. [1] Quase 2.500 anos depois, ainda não sabemos o que causou a morte do antigo monarca, cujo império, em seu auge, se estendia da antiga Macedônia, na península Balcânica, ao Egito, ao sul, e à Ásia menor, ao leste. Historicamente, o envenenamento é a teoria mais aceita para sua causa mortis, ainda que outras teorias, como febre tifoide e malária, também figurem nesse rol. Mais recentemente, um incidente narrado por Plutarco e desconsiderado por investigadores ao longo da história pode apontar uma plausível outra causa da morte. Esse incidente, que ocorreu quando o imperador entrou na Babilônia, envolveu um bando de corvos exibindo um comportamento anormal e posteriormente morrendo aos seus pés. O comportamento inexplicável dos corvos assemelha-se à doença e morte aviárias semanas antes dos primeiros casos humanos de vírus do Nilo Ocidental serem identificados nos EUA, no final da década de 90. Propõe-se, assim, que Alexandre, o Grande, possa ter sido vítima de encefalite do vírus do Nilo Ocidental [2].

Alexandre o Grande mosaico romano
Alexandre, o Grande (em destaque à esquerda deste mosaico romano do ano 100 a.C.), pode ter sido vítima de encefalite do vírus do Nilo Ocidental.

Todos os anos, aproximadamente 7 em cada 100.000 pessoas são hospitalizadas nos EUA com encefalite [3], sendo que nos menores de 1 ano esses números praticamente dobram: 13,5 a cada 100.000 crianças necessitam de internações [4].

A encefalite viral é um desafio em seu diagnóstico e manejo clínico, dada a heterogeneidade de sua apresentação e a miríade de agentes causais possíveis. [4] Basicamente, trata-se de uma síndrome causada por uma inflamação (infecciosa ou não) do parênquima encefálico associada à “disfunção neurológica”. Esse termo amplo se traduz, na apresentação clínica, por “estado mental alterado”, seja por redução do nível de consciência, seja por letargia, mudança de personalidade ou comportamento anormal; convulsões; e/ou sinais neurológicos focais, por vezes acompanhados de febre, náuseas e vômitos [5]. A propedêutica armada pode indicar pleocitose no líquido cefalorraquidiano (LCR) e alterações em exames de neuroimagem e eletroencefalografia (EEG).

 

ENCEFALITE: ETIOLOGIA E PADRÕES EPIDEMIOLÓGICOS

Nos EUA, a causa da encefalite é desconhecida em aproximadamente metade dos casos [3], podendo chegar a 63% em alguns estudos [6]. Dos casos conhecidos, 20 a 50% são atribuídos a vírus. O vírus da herpes simples (HSV) representa de 50 a 75% dos casos virais identificáveis, com o vírus da varicela zoster (VZV), os enterovírus e os arbovírus somando a maioria dos casos remanescentes [3].

OUTRAS CAUSAS

Das causas identificáveis, bactérias são responsáveis por cerca de 16% dos casos, enquanto 7% são causadas por doença priônica, 3% por parasitas e 1% por fungos [4].

Das crianças hospitalizadas, aproximadamente 40% necessitam de cuidados intensivos, com uma permanência média nessas unidades de 16 dias [7]. Para os americanos, a média estimada de gastos com a hospitalização, de acordo com o agente, varia de US$ 58.000 a US$ 89.600 por paciente com encefalite viral. Lá, há aproximadamente 6.000 hospitalizações por ano por esse diagnóstico, estimando-se um custo anual de 350 a 540 milhões de dólares, fora os custos dos cuidados após a desospitalização, os custos para os cuidadores e os dias perdidos de trabalho [3].

Em nosso meio, com o advento das constantes epidemias de dengue, observou‐se um novo perfil etiológico nas encefalites virais em pacientes imunocompetentes: a dengue aparece como principal causa (47%), seguida pelo HSV‐1 (17,6%), citomegalovírus (CMV) e enterovírus (5,8%), não se determinando a etiologia em 23,5% dos casos [8].

 

APRESENTAÇÃO CLÍNICA DAS ENCEFALITES

As manifestações de encefalite variam de acordo com o agente viral, a região do encéfalo afetada (podendo ser mais de uma), a idade do paciente e seu status imunológico.

Neonatos e lactentes jovens tendem a apresentar quadros mais inespecíficos, podendo se manifestar com…

  • febre,
  • convulsões,
  • inapetência ou
  • letargia.

Crianças mais velhas e adolescentes, por sua vez, podem demonstrar…

  • febre,
  • sintomas psiquiátricos,
  • labilidade emocional,
  • transtornos do movimento,
  • ataxia,
  • convulsões,
  • estupor,
  • letargia ou
  • mudanças neurológicas localizadas, como hemiparesia ou alterações nos nervos cranianos.

Casos graves podem se apresentar com estado de mal epiléptico, edema cerebral (e suas manifestações clínicas), secreção inapropriada de hormônio antidiurético e/ou falência cardiorrespiratória [5].

Assim, a encefalite viral é uma emergência aguda e potencialmente fatal que requer avaliação e intervenções imediatas, assegurando-se a estabilização cardiorrespiratória e o controle das crises convulsivas, nos casos em que isso se faz necessário.

Anamnese

A anamnese deve incluir considerações da estação do ano em que o paciente adoeceu, localização geográfica, viagens e possíveis doenças a que foi exposto, contato com animais, estado de saúde dos familiares, contato com pessoas doentes e casos conhecidos de encefalite na área de convívio. Condições médicas subjacentes, como o uso de medicações, antecedentes pessoais patológicos, imunossupressões, uso de drogas e práticas sexuais (no caso de adolescentes) também são de conhecimento importante.

O exame físico e neurológico fornece pistas sobre as causas potenciais e pode guiar os exames a serem solicitados [3].

Pela dificuldade em se estabelecer um consenso de caso suspeito de encefalite (com implicações em padronização das abordagens diagnósticas), um consórcio formado por especialistas do mundo todo lançou em 2013 um consenso contendo algoritmos para a definição de caso e diagnóstico em adultos e crianças [9]. O algoritmo de critérios diagnósticos é apresentado abaixo:

 

Tabela 1. Critérios Diagnósticos para Encefalite e Encefalopatia de Etiologia Infecciosa ou Autoimune Presumível

Adaptado de Venkatesan A et al. Case Definitions, Diagnostic Algorithms, and Priorities in Encephalitis: Consensus Statement of the International Encephalitis Consortium. Clin Infect Dis. 2013

 

Como pode-se perceber, alguns dos critérios menores incluem exames de neuroimagem, EEG e pleocitose liquórica, para que se faça a suspeita de encefalite, de modo que podemos inferir que a mera apresentação do critério maior (alteração do estado mental) é condição para que se desencadeie a busca de alterações na propedêutica armada.

Alguns outros pontos de esclarecimento em relação a eles são importantes:

  • Encefalopatia se refere à clínica de estado mental alterado, manifestado como confusão, desorientação, mudanças no comportamento ou outros déficits cognitivos, com ou sem inflamação do tecido cerebral. A encefalopatia sem inflamação pode ser desencadeada por um grande número de condições tóxicas ou metabólicas, mas também pode estar associada a agentes infecciosos específicos, tais como a Bartonella henselae ou o vírus influenza. Difere da encefalite pelo fato da última ser caracterizada por inflamação do parênquima encefálico através de infecção direta deste tecido, um processo pós-infeccioso como a encefalomielite disseminada aguda (acute disseminated encephalomyelitis — ADEM) ou por uma condição como a encefalite por anticorpos antirreceptor do N-metil-D-aspartato (NMDAR);
  • Encefalite confirmada, como escrito em “Critérios Menores”, requer um dos seguintes achados:
    • Confirmação anatomopatológica de tecido cerebral consistente com encefalite;
    • Evidência patológica, microbiológica ou sorológica definidora de infecção aguda com microrganismo fortemente associado a encefalite em uma amostra clínica apropriada;
    • Evidência laboratorial ou condição autoimune fortemente associada a encefalite;
  • Febre é um achado comum na encefalite, mas é inespecífica. Os autores escolheram restringir o período de aparecimento da febre para até 72 horas após a hospitalização para excluir possíveis infecções nosocomiais secundárias. Como sua natureza é flutuante, ela pode estar ausente na apresentação do paciente aos cuidados médicos e mesmo não ocorrer em pacientes imunossuprimidos;
  • Convulsões na encefalite podem ser generalizadas, sugerindo disfunção global do sistema nervoso central (SNC), ou focais, indicando processo localizado. Convulsões febris são relativamente comuns em crianças pequenas e, ocorrendo isoladamente, não orientam a pesquisa para encefalite. De fato, os autores sugerem a alteração do estado mental por pelo menos 24 horas justamente para excluir os casos de estados pós-ictais que sucedem as crises febris;
  • Pleocitose no LCR sugere processo inflamatório no parênquima encefálico, na meninge ou em ambos (meningoencefalite). A ausência de pleocitose, no entanto, não exclui encefalite [9].

 

DIAGNÓSTICO DA ENCEFALITE

Para padronizar a abordagem em estudos multicêntricos e colaborativos e fornecer uma ferramenta para auxílio dos médicos em todo o mundo no manejo dos casos suspeitos de encefalite viral, o consórcio de 2013 propôs dois algoritmos, um para adultos e outro para crianças, mostrados abaixo [9].

Tabela 2. Algoritmo Diagnóstico para Avaliação Inicial de Encefalite em Adultos

Adaptado de Venkatesan A et al. Case Definitions, Diagnostic Algorithms, and Priorities in Encephalitis: Consensus Statement of the International Encephalitis Consortium. Clin Infect Dis. 2013

 

Exames diagnósticos

Tabela 3. Algoritmo Diagnóstico para Avaliação Inicial de Encefalite em Crianças

Adaptado de Venkatesan A et al. Case Definitions, Diagnostic Algorithms, and Priorities in Encephalitis: Consensus Statement of the International Encephalitis Consortium. Clin Infect Dis. 2013

 

O VÍRUS DO NILO OCIDENTAL NO BRASIL

Classicamente, o vírus do Nilo Ocidental (WNV) não constitui um patógeno potencial para encefalites no Brasil, devendo ser considerado apenas para aqueles pacientes que viajaram para regiões endêmicas. Em 2011, foram encontradas, pela primeira vez, evidências da circulação do vírus no Brasil. Na época, pesquisadores do IOC/Fiocruz identificaram anticorpos para o WNV no sangue de cavalos do Pantanal do Mato Grosso do Sul. Isso indica que, em algum momento, estes animais tiveram contato com o vírus. Apenas em 2014 foi detectado o primeiro caso clínico de febre do Nilo Ocidental em humanos no país, no estado do Piauí [10]. Em julho deste ano (2018), pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, em Belém, anunciaram ter feito o primeiro isolamento em equinos em uma fazendo no Espírito Santo mortos por encefalite causada pelo vírus.

O WNV é da mesma família do zika, também originário da África e transmitido por mosquitos. Entrou nas Américas pelos Estados Unidos, no fim da década de 1990, dispersou-se rapidamente naquele país e migrou para as Américas Central e do Sul [11].

 

Os exames de rotina mais frequentemente empregados para o diagnóstico da encefalite viral incluem a reação de cadeia de polimerase (PCR) e PCR transcriptase-reversa (RT-PCR) em amostras de LCR. PCR é usado na detecção de vírus DNA, enquanto o RT-PCR é para os vírus RNA.

De forma mais resumida, uma recente revisão publicada no NEJM [3] propõe que testes iniciais em indivíduos imunocompetentes incluam ensaios de PCR e RT-PCR no LCR para HSV-1, HSV-2, VZV, enterovírus e, em crianças <3 anos, parecovírus humano. Caso esses exames falhem em determinar o agente causal, frequentemente parte-se para exames que incluem PCR no LCR para CMV, HHV-6/7, EBV e HIV — esses exames podem ser solicitados já inicialmente em pacientes imunossuprimidos. Testes sorológicos em amostras de soro e LCR são essenciais para a pesquisa de arboviroses, VZV, EBV, sarampo, caxumba, rubéola e raiva, dentre outros.

PCRs adicionais

PCR e RT-PCR em espécimes da garanta e nasofaringe podem ajudar a estabelecer um diagnóstico de infecções por adenovírus, influenza e sarampo, enquanto testes na saliva ajudam no diagnóstico de caxumba e raiva, e testes nas fezes no de infecções por enterovírus.

Essencialmente, os exames diagnósticos focam em distinguir duas situações: encefalite viral de autoimune e encefalite por HSV daquela causada por outros agentes virais. Não há diferenças significativas, no que diz respeito ao padrão clínico de apresentação, entre a encefalite por HSV e por não-HSV, mas, de maneira geral, o HSV cursa com pleocitose no LCR mais pronunciada e anormalidades focais mais frequentes no EEG e em exames de neuroimagem. Em uma revisão de casos de encefalites em adultos caracterizadas por anomalias nos lobos temporais em exames de ressonância nuclear magnética (RNM), os padrões que favoreceram o HSV foram idade mais avançada, apresentação clínica aguda, febre, sintomas gastrointestinais e baixas incidências de ataxia e exantema. Os não-HSV mais frequentemente tiveram lesões bitemporais, bem como lesões fora do lobo temporal e das regiões do giro cingulado e insular [3].

Testes de sequenciamento de nova geração para identificar patógenos no LCR ou tecido cerebral recentemente tornaram-se disponíveis comercialmente nos EUA. Neles, ácido nucleico do hospedeiro ou do patógeno são extraídos dessas amostras, purificados e sequenciados, sendo posteriormente comparados com uma base de dados em uma biblioteca para a identificação do patógeno. No entanto, estudos adicionais ainda são necessários para determinar sua sensibilidade e especificidade, seu impacto nos resultados e as situações nas quais eles poderiam substituir os testes convencionais [3].

exames diagnosticos cerebrais

 

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Antonio Junior

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp.
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