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Acidente por Lagartas – Erucismo

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É frequente a busca aos Prontos-Socorros quando uma criança entra em contato com lagartas. As lagartas, a depender do Estado, podem ser chamadas de taturana, lagarta de fogo, tromba de elefante, marandová, maranduvá, embira, ambira, bicho-cachorrinho, bicho-que-queima, bicho-cabeludo, mandruvá ou mondrová. A depender da espécie pode ter apresentação clínica mais grave, sendo importante idetificar as do gênero Lonomia. Continue lendo o post e saiba identificar os tipos de lagartas, diferenciar as apresentações clínicas e se atualizar sobre o tratamento.

Os acidentes decorrentes do contato com as cerdas das lagartas são denominados de erucismo. As largatas pertencem a ordem Lepidoptera, que é composta por mais de 180.000 espécies com ampla distribuição geográfica. Os lepidópteros se desenvolvem de forma completa em quatro fases: ovo, larva ou lagarta, pupa ou crisálida, e adulto (imago) representadas pelas formas aladas como borboletas e mariposas.

No Brasil esses tipos de lagartas são popularmente chamadas de taturanas (da língua tupi, semelhante a fogo; tata= fogo, rana= semelhante). As lagartas são revestidas por pelos e cerdas urticantes ou espinhos (setas), em diferentes formatos, como setas simples ou plumosas, setas em formas arbóreas (scolus com espinhos e scolus com setas), verrucas e verrículas, que contém veneno em seu interior e constituem o seu mecanismo de defesa contra predadores. Enquanto os espinhos são estruturas fixas, os pelos podem se dissipar pelo ar, como “aerossóis”, ocasionalmente causando lesões.

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Megalopyge operculares: espinho. Ulrich et al. Morphology and Function of the venom apparatrus os insects – bees, wasps, ants and caterpillars. In: Bücherl W. Venomous animals and their venoms, 1971

Entre as lagartas, há pelo menos 150 espécies em 15 famílias que podem causar acidentes com repercussão clínica. No Brasil, as lagartas das famílias Megalopygidae, Saturniidae e Arctiidae são as principais causadoras de acidentes.

Megalopyge spp
M. lanata
Podalia app
Automeris spp
Lonomia spp
Premolis semirufa

O erucismo tem característica sazonal bem determinada, ocorrendo principalmente nos meses do final do verão.

Fonte: Centro de Informação e Assintência Toxicológica (CIATox) de Campinas – SP

Fonte: Centro de Informação e Assintência Toxicológica (CIATox) de Campinas

Tanto a fisiopatologia do erucismo como a identificação das toxinas presentes nos diversos venenos não estão totalmente esclarecidos. As lagartas dos gêneros Megalopyge e Podalia apresentam dois tipos de cerdas; as urticantes, que são menores e pontiagudas e estão conectadas às glândulas basais de veneno; e as cerdas não nocivas, que são mais longas, coloridas e superficiais.

As toxinas identificadas em larvas de lepidópteros incluem proteínas termolábeis, enzimas proteolíticas, histamina, e ativadores de plasminogênio com atividade semelhante à da tripsina e quimiotripsina. No entanto, uma análise mais específica do extrato de cerdas de Megalopyge spp mostra que o mesmo é de natureza proteica, porém sem a presença de histamina, serotonina, cininas ou acetilcolina.

De maneira geral, o contato com as cerdas urticantes provoca um processo inflamatório local no tegumento afetado (pele ou mucosas). Em adição, as cerdas introduzidas podem provocar uma reação local com formação de granulomas de corpos estranhos, incluindo a câmara ocular (oftalmia nodosa) e as articulações. No que tange as articulações, temos no Brasil a pararamose ou “reumatismo dos seringueiros”, complicação crônica decorrente do contato com cerdas das lagartas da mariposa Premolis semirufa, que se alimentam das folhas de seringueiras (Hevea brasiliensis). As pequenas cerdas dessas lagartas podem penetrar as articulações interfalangeanas, principalmente nas mãos, determinando uma fibrose periarticular progressiva, levando a anquilose e perda da função articular. Outros achados histológicos incluem necrose epidérmica após contato com Megalopygidae opercularis e vasculite após contato com cerdas de mariposas da espécie Hylesia paulex.

Pararamose – http://www.saude.sp.gov.br/resources/cve-centro-de-vigilancia-epidemiologica/areas-de-vigilancia/doencas-de-transmissao-por-vetores-e-zoonoses/aula03_peconhentos.pdf

As manifestações clínicas do erucismo em humanos são predominantemente locais, principalmente edema, eritema e dor de intensidade variável, que pode persistir por horas ou dias, por vezes reportada como intensa ou excruciante e em queimação. Sintomatologia sistêmica variada pode ser encontrada em um terço dos casos de erucismo. Quadros ameaçadores à vida (hemorragia sistêmica) decorrentes de coagulapatia são reportados após contato com cerdas urticantes de larvas gregárias do gênero Lonomia.

Quanto ao tratamento do erucismo, além das medidas de prevenção, este é basicamente sintomático e de suporte.  Devem ser evitados locais com alta infestação das lagartas durante o período sazonal, e os trabalhadores devem usar roupas de proteção adequada. Caso haja contato com lagartas, a pele pode ser lavada com água fria e abundante e as cerdas removidas cuidadosamente com o uso de fitas adesivas.  O tratamento da dor local é variado, com descrição de diversos procedimentos, como anestesia local (uso tópico ou por infiltração), analgésicos não opióides e opióides, anti-inflamatórios, e compressas frias. No acidente lonômico que evolui com coagulopatia, a soroterapia com antiveneno específico está indicada.

 Acidentes por lagartas do gênero Lonomia sp.

Constitui a forma mais grave do erucismo. O envenenamento se manisfesta especialmente como distúrbio na coagulação sanguínea. As principais atividades tóxicas identificadas no veneno de lonomias são atividade fibrinolítica direta, degradação do fator XIII da coagulação, ativação de fator X e de protrombina e  hialuronidases. Não se observa alteração nas plaquetas. A síndrome hemorrágica observada em acidentes com lonomia resulta emquadro semelhante ao da coagulação intravascular disseminada (CIVD).

Além do quadro local de dermatite urticante, presente imediatamente após o contato, após um período que pode variar de uma até 48 horas, instala-se um quadro de discrasia sangüínea, acompanhado ou não de manifestações hemorrágicas que costumam aparecer oito a 72 horas após o contato. Equimoses podem ser encontradas podendo chegar a sufusões hemorrágicas extensas, hematomas de aparecimento espontâneo ou provocados por trauma ou em lesões cicatrizadas, hemorragias de cavidades mucosas (gengivorragia, epistaxe, hematêmese, enterorragia), hematúria macroscópica, sangramentos em feridas recentes, hemorragias intra-articulares, abdominais (intra e extraperitoniais), pulmonares, glandulares (tireóide, glândulas salivares) e hemorragia intraparenquimatosa cerebral.

De acordo com a intensidade dos distúrbios hemostáticos, o acidente pode ser classificado em:

a) Leve: paciente com envenenamento local e sem alteração da coagulação ou sangramentos até 48 horas após o acidente, confirmado com a identificação do agente;

b) Moderado: paciente com envenenamento local, alteração da coagulação somente ou manifestações hemorrágicas na pele e/ou em mucosas (gengivorragia, equimose, hematoma), hematúria e sem alteração hemodinâmica (hipotensão, taquicardia ou choque);

c) Grave: paciente com alteração da coagulação, manifestações hemorrágicas em vísceras (hematêmese, hipermenorragia, sangramento pulmonar, hemorragia intracraniana), e com alterações hemodinâmicas e/ou falência de múltiplos órgãos e sistemas.

A principal complicação é a insuficiência renal aguda que pode ocorrer em até 5% dos casos. A fisiopatologia é multifatorial, podendo estar relacionada a hipotensão, sequestro de sangue e ação direta do veneno.

Não existem exames específicos para o diagnóstico de envenenamento por Lonomia sp. Podem ser observados:

– Alteração do Tempo de Coagulação – prolongamento do Tempo de Protrombina (TP) e Tempo de Tromboplastina Parcial Ativado (TTPA), observados no coagulograma;

– Diminuição acentuada do fibrinogênio plasmático;

– Elevação de Produtos de Degradação do Fibrinogênio (PDF) e dos Produtos de Degradação da Fibrina (PDFib);

– Número de plaquetas normal.

O diagnóstico precoce e o tratamento adequado com o soro, particilarmente nas primeiras seis horas após o contato, podem prevenir a ocorrência de coagulopatia grave, hemorragias e complicações renais. A tabela a seguir resume a classificação quanto a gravidade do acidente e a soroterapia recomendada.

 

Classificação Manifestações clínicas Tratamento
Leve · Sintomas locais

· Ausência de alteração da coagulação e/ou sangramentos até 12 horas após o contato

· Sintomáticos

· Não necessitam de soroterapia antiveneno

· Pacientes podem ser liberados

Moderado · Sintomas locais, alteração da coagulação com e sem manisfestações hemorrágicas na pele e/ou mucosas · Sintomáticos e tratamento específico com 5 ampolas de SALon*
Grave · Alteração da coagulação, manifestações hemorrágicas em vísceras, alterações hemodinâmicas e/ou falência de múltiplos órgãos e sistemas · Sintomáticos e tratamento específico com 10 ampolas de SALon*

*SALon: Soro Antilonômico

Em casos com acidentes com lagartas é sempre recomendado entrar em contato com o Centro de Informação e Assistência Toxicológica de referência para auxíliar na identificação do animal e para discutir a terapêutica indicada.

 

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Dra. Camila Carbone Prado

Pediatra e Gastroenterologista Pediátrica pela Unicamp Especialista em Nutrição Parenteral e Enteral pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (SBNPE) e Toxicologia Médica pela Associação Médica Brasileira (AMB) Médica Assistente do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) de Campinas - Unicamp 

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