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Febre e Febrefobia

A febre é uma das maiores preocupações dos pais. E é também um dos sintomas mais comuns de doenças. Quais são suas possíveis causas, e quais são os tratamentos mais adequados e as melhores orientações para os cuidadores?

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“Doutor, meu filho está apresentado febre. Quantas vezes preciso acordar à noite para saber se ele estará febril para dar remédio a ele?”

Quantos de nós, pediatras, já ouvimos essa mesma frase? Com o tempo, o que tem mudado no comportamento dos pais diante de um quadro de febre em seus filhos? Qual a reação da maioria deles se respondermos a esta pergunta com o questionamento “mas se ele estiver dormindo e tranquilo, por que o senhor ou a senhora gostaria de medicá-lo?”?

A febre em crianças é um dos sintomas mais comuns de doenças, normalmente causada por infecções virais autolimitadas. Apesar de não ser danosa por si só, pode estar associada a dores e desconforto. No entanto, ainda é a primeira causa de consultas médicas na infância e a primeira de exposição a medicações em pediatria.

 

A “FEBREFOBIA”

A literatura mostra que complicações como estados de mal epiléptico ou insolação, possivelmente decorrentes de febres >40ºC, são eventos extremamente raros. Todavia, preocupam a maioria dos pais.

Desde 1980, estudos têm surgido explicando e cunhando o termo “febrefobia” para explicar a ansiedade indevida em relação à febre. [1] Já naquela época, estes trabalhos demonstravam que a maioria dos pais se preocupa sobremaneira com as possíveis consequências da febre. Por exemplo, a maioria crê que febre de 40 °C ou mais poderia causar danos neurológicos sérios, ainda que a literatura mostre que complicações como estados de mal epiléptico ou heat stroke (os efeitos deletérios que o excesso de temperatura causa no corpo) são eventos extremamente raros. Além disso, os pais frequentemente temem que a febre possa ser um primeiro sinal de infecção bacteriana grave, outra condição rara na gama de doenças febris na infância.

As recomendações desses estudos, desde então, se baseiam na educação dos pais em relação à febre e seu comportamento frente a ela. Espantosamente, quatro décadas depois, ainda enfrentamos a mesma angústia.

Embora o comportamento dos pais tenha mudado nas últimas décadas, ainda há falhas em seguirem as recomendações literárias. Até mesmo conceitos básicos, como a definição de febre, são falhos, o que significa que mais esforços em relação à educação dos cuidadores são necessários. Significa também que há muitas discrepâncias entre as publicações, mas também que muitas vezes exemplos ruins têm sido dados pelos profissionais de saúde.

Quadro crianca doente com febre 1893
“The Sick Child – 1893”. Pintado por J. Bond Francisco. Smithsonian American Art Museum.

 

Várias publicações oficiais existem em todo o mundo buscando normatizar o comportamento dos pais diante de quadros febris. As recomendações gerais são:

  • Método de aferição de temperatura (retal, oral, auricular (membrana timpânica), pela artéria temporal ou axilar);
  • A definição de febre (temperatura ≥38 °C);
  • Quando começar antitérmicos;
  • Tratamentos físicos (oferta hídrica, roupas leves, compressas frias, ajuste da temperatura ambiente);
  • Quais drogas antitérmicas usar. [2]

Para que possamos instruí-los bem, no entanto, o primeiro passo é que tenhamos um bom conhecimento sobre os mecanismos que levam à produção da febre no nosso corpo. Abaixo seguem algumas breves explicações sobre o tema.

 

Temperatura Normal do Corpo

A temperatura do nosso corpo varia ao longo do dia, controlada pelo centro regulador de temperatura localizado no hipotálamo anterior (Figura 1). Somos capazes de manter uma temperatura corporal mais ou menos estável porque esse centro equilibra o excesso de produção de calor, proveniente da atividade metabólica nos músculos e no fígado, dissipando-o através da pele e dos pulmões.

Figura 1 — Localização do hipotálamo no encéfalo

 

A temperatura, no entanto, não é constante ao longo do dia. De modo geral, tipicamente ela aumenta 0,5 °C do início da manhã até o final da tarde. No entanto, em indivíduos se recuperando de doenças febris, essa variação chega a 1,0 °C. Mesmo em processos febris, essa relação é mantida, mas seus valores são maiores. Mulheres no ciclo ovulatório normalmente têm a temperatura ligeiramente mais baixa pela manhã nas semanas que antecedem a ovulação, elevando-se cerca de 0,6 °C no período pós-ovulatório. [3]

 

Febre: Termos e Definições

Febre

Febre ocorre quando o aumento da temperatura corporal é regulado pelo hipotálamo. Para uma boa compreensão, de maneira bem simples, nosso hipotálamo funciona como um termostato. Durante a febre, o ponto de ajuste da temperatura corporal no centro termorregulatório hipotalâmico é ajustado para cima, desencadeando processos de termogênese e redução da perda de calor pela periferia.

Quando ocorre esse aumento do ponto de ajuste de temperatura no hipotálamo, em um processo regulado por citocinas e pela prostagladina E2 (PGE2), há ativação de neurônios do centro vasomotor, que iniciam vasoconstrição, e de neurônicos sensíveis ao calor, que aumentam a produção de calor pela periferia.

É por conta dessa vasoconstrição periférica que se dá a sensação de frio nas mãos e nos pés dos pacientes febris. Esse processo, por si, só é capaz de aumentar a temperatura corporal em cerca de 1 a 2 °C. Ao mesmo tempo, dá-se início a um processo de termogênese, que ocorre em dois lugares:

  • No tecido adiposo, no que se dá o nome de “termogênese sem tremores”, por meio do catabolismo da dita gordura marrom — muito comum em recém-nascidos, com rápido declínio de sua quantidade ao longo da vida;
  • Nos músculos, através de tremores, e também no fígado, por meio de sua atividade metabólica. Os tremores, no entanto, embora somem por grande parte da produção de calor, não são necessários para o desencadeamento da febre.

Além disso, nós, humanos, adotamos medidas comportamentais nessas condições, com redução de nossa exposição a situações que promoveriam nosso resfriamento, em especial através do uso de roupas extras, de procura de ambientes mais quentes e da redução de atividade.

Esse processo continua até que a temperatura atinja o valor determinado. Quando o centro regulador de temperatura hipotalâmico é reajustado para a temperatura “normal” (seja pelo uso de medicamentos, seja pela redução natural da quantidade de pirógenos), o processo de perda de calor é acelerado pela vasodilatação e sudorese.

 

Hipertermia

Nesse caso, o aumento da temperatura se dá independentemente da ativação hipotalâmica. Insolação, certas doenças metabólicas e alguns agentes farmacológicos com efeitos na termorregulação são suas principais causas.

Na hipertermia a produção ou aquisição de calor supera a capacidade do corpo de perder temperatura, levando a aumento rápido dela, que pode ser fatal se não tratado.

Seu tratamento é diferente do da febre. Como o ajuste hipotalâmico continua normal, antipiréticos, que em geral agem na inativação de PGE2, não produzem efeito, de modo que medidas externas de resfriamento são requeridas. [3]

 

Fisiologia da Febre

Pirógenos

São substâncias capazes de desencadear as reações que levam à febre. São divididos em exógenos ou endógenos.

Pirógenos exógenos: aqueles que vêm de fora do hospedeiro, em geral micróbios e as substâncias que produzem (ex.: endotoxina lipossacarídica produzida pelas bactérias Gram negativas, toxina da síndrome do choque tóxico 1 (TSST-1) e outras enterotoxinas produzidas pelos Staphylococcus aureus…). Essas substâncias interagem com estruturas de reconhecimento de patógenos externos, como os Toll-like receptors (TLR) e os complexos de histocompatibilidade maiores (MHC) II, que ativam vias de liberação de citocinas pirogênicas.

Pirógenos endógenos: são as chamadas citocinas pirogênicas, pequenas moléculas proteicas que regulam o sistema imunológico. Existem várias delas implicadas no processo de produção de febre, sendo as principais a interleucina (IL)-1, a IL-6 e o fator de necrose tumoral (TNF)-⍺. As fontes primárias de citocinas pirogênicas são os monócitos, neutrófilos e linfócitos, embora uma ampla gama de células, incluindo as endoteliais, sejam capazes de produzir essas moléculas quando estimuladas. Essas citocinas, entretanto, quando na circulação, não são capazes de atravessar o epitélio cerebral, de maneira que presume-se que elas ajam através de interação com o endotélio de capilares hipotalâmicos. [3]

 

Mecanismos de Geração da Febre

O primeiro passo para o aumento do ponto de ajuste da temperatura no hipotálamo é a interação das citocinas com o endotélio vascular dos órgãos circunventriculares hipotalâmicos, uma rede de capilares fenestrados que circunda o centro regulador da temperatura.

Após a produção de citocinas pirogênicas pelas células, elas entram no sistema circulatório e estimulam a produção de PGE2. A PEG2 deriva da ação de enzimas ciclo-oxigenase (COX, tanto a COX-1 quanto a COX-2), que usam o ácido aracdônico das membranas celulares para sua produção — por isso os inibidores de COX-1 e COX-2, ou seja, os anti-inflamatórios não esteroidais, são potentes antipiréticos.

Durante a febre, os níveis de PGE2 estão elevados no tecido hipotalâmico e no terceiro ventrículo cerebral. Além da produção de PGE2 no cérebro, há produção dessa molécula nos tecidos periféricos, o que está associado à mialgia e artralgia que acompanham os quadros febris. No entanto, é somente a PGE2 produzida no tecido cerebral que induz a produção de febre.

Antipiréticos são a forma mais eficaz de se baixar a temperatura. O uso de medidas físicas [de controle da temperatura] estaria restrito aos casos de hipertermia.

Apesar do seu importante papel no início da febre, a PGE2 não é um neurotransmissor. A liberação de PGE2 do lado cerebral do epitélio hipotalâmico ativa receptores de PGE2 nas células da glia, o que promove aumento rápido de monofosfato de adenosina cíclico (AMPc), este sim um neurotransmissor. A elevação dos níveis de AMPc, por sua vez, tanto muda o ponto de ajuste da temperatura no centro regulador do hipotálamo quanto induz a liberação de neurotransmissores monoamina, desencadeando os processos motores e vasomotores da febre citados anteriormente.

Em infecções no SNC, as células gliais e possivelmente até mesmo mesmo neuronais produzem IL-1, IL-6 e TNF-⍺. Neste caso, pensa-se que as próprias citocinas sejam capazes de estimular o reajuste de temperatura no hipotálamo, contornando o papel dos órgãos circunventriculares. Isso também explica porque casos de trauma e sangramento encefálicos produzem febre. [3]

A Figura 2 abaixo ilustra o processo de indução da febre.

Figura 2 — Mecanismos de produção da febre. A figura mostra os passos bioquímicos que levam à mudança do set point de temperatura no hipotálamo e ao aumento da temperatura. Os sinais de ⊖ indicam em quais vias atuam as drogas que, mais ou menos eficazmente, bloqueiam esse processo. Adaptada de UpToDate. Pathophysiology and treatment of fever in adults.

 

Figura 3 — Cobertores térmicos para hiper ou hipotermia, de uso em geral hospitalar

Uma boa conclusão dessa explicação é que, quando decidimos medicar o paciente por conta da febre, mecanismos físicos, como compressas frias, banhos ou uso de cobertores térmicos (mais comuns em ambientes hospitalares) são praticamente ineficazes, uma vez que o hipotálamo, funcionando como um termostato, continuará promovendo mudanças para que haja aumento da temperatura. Antipiréticos, que atuam na produção de PGE2, são a forma mais eficaz de se baixar a temperatura. Assim, o uso de medidas físicas estaria restrito aos casos de hipertermia ou na febre, caso sejam absolutamente necessários, ao percebermos que a temperatura iniciou seu declínio (após ou não o uso de antipiréticos, pois indicaria uma mudança para os níveis basais na temperatura de ajuste no hipotálamo).

 

 

O Manejo da Febre Segundo a OMS

Figura 4 — Pocket Book da OMS sobre cuidados em crianças hospitalizadas, em que fornece instruções sobre o manejo da febre

A Organização Mundial de Saúde (OMS), em publicação de 2005 (segunda edição em 2013), faz referência a temperaturas medidas por via retal em crianças, considerando que as medições por via oral e axilar são, em geral, 0,5 °C e 0,8 °C menores, respectivamente.

O documento pressupõe que a febre, por si só, não é uma indicação para o uso de antibióticos e que ela pode ajudar o sistema imunológico contra infecções. No entanto, febre alta (>39 °C) pode ter efeitos negativos, como:

  • Redução do apetite;
  • Tornar a criança irritada;
  • Precipitar convulsões em algumas crianças entre 6 meses e 5 anos com predisposição genética a convulsões febris;
  • Aumentar o consumo de oxigênio, o que pode piorar o estado clínico de pacientes com, por exemplo, pneumonia graves, insuficiência cardíaca e meningite.

Recomenda que todas as crianças com febre sejam examinadas para sinais e sintomas que indiquem sua causa subjacente, bem como que tratamento congruente ao quadro seja instituído.

Como regimes antipiréticos, recomenda que sejam usados o paracetamol e o ibuprofeno. Eles estariam restritos às crianças com ≥39 °C e que apresentam sinais de incômodo por conta da temperatura elevada. Crianças que estão alertas e ativas pouco provavelmente se beneficiariam do uso dessas drogas.

O ibuprofeno seria comparável ao paracetamol em eficácia, porém, sendo um AINE, tem o potencial de causar gastrite e é ligeiramente mais caro. O paracetamol é indicado na dose de 15 mg/kg a cada 6 h e o ibuprofeno na dose de 10 mg/kg a cada 6–8 h. Outros agentes, como o AAS (ligado à síndrome de Reye e contraindicado em casos suspeitos de catapora, dengue e outras síndromes hemorrágicas), a dipirona e fenilbutazona (por conta de sua toxicidade e/ou ineficácia) não estariam recomendadas.

O documento encoraja, ainda, vestir as crianças com roupas leves, mantê-la num quarto morno e bem ventilado e aumentar a oferta de líquidos para elas. [4]

 

Conhecimento e Comportamento dos Pais em Relação à Febre

Numa revisão dos trabalhos publicados em 30 países na última década sobre o tema, encontrou-se que…

Os métodos mais utilizados pelos pais para medir a temperatura foram:

  • tocar a criança (42%),
  • termometria axilar (33%),
  • termometria auricular (6%),
  • termometria retal (5%) e
  • termometria oral (1%).

Uma redução significativa ao longo do tempo foi observada em relação ao uso do método retal (de 98% no primeiro quinquênio da última década para 4% no último), com um correspondente aumento do uso do método axilar (de 1 para 19%).

A redução do uso da via retal como meio de verificação da temperatura e rota para administração de medicamentos, especialmente em países em desenvolvimento, têm ocorrido provavelmente por razões culturais, pelo fato da obtenção da temperatura através de métodos periféricos ser muito mais prática, mas talvez também pela falta de acesso às recomendações internacionais. [2]

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Antonio Junior

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp.
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