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Insônia, Parassônias e Narcolepsia em Crianças: Aspectos Clínicos, Diagnóstico e Manejo

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Equipe PortalPed comenta artigo da Lancet Neurology sobre problemas comuns (e outros nem tanto!) com o sono em crianças.

 

Problemas com o sono são frequentes em crianças, em especial naquelas com algum distúrbio neurológico de base, mas ainda assim constituem um tema pouco abordado na prática da puericultura. O artigo desta semana traz uma revisão bibliográfica sobre os três assuntos acima citados (insônia, parassônias e narcolepsia), escolhidos pelos autores por representarem, respectivamente, sono insuficiente, sono perturbado e hipersônia.

Para fixar: insônia = sono insuficiente

parassônia = sono perturbado

narcolepsia = hipersônia

O artigo, publicado no The Lancet em outubro de 2016 revela que, em geral, 25% das crianças possuem algum problema para dormir até a adolescência, mas que esse índice pode chegar a até 75% quando consideramos apenas crianças portadoras de transtornos do espectro autista, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), epilepsia ou cefaleia.

 

DISTÚRBIOS DO SONO E INFLUÊNCIA NA SAÚDE DA CRIANÇA

insônia e distúrbios do sono em crianças

A importância de prezarmos por uma boa qualidade e quantidade de sono para nossos pacientes se dá por ele estar diretamente relacionado a aspectos neurocognitivos e comportamentais do desenvolvimento, de maneira que interrupções do sono podem impactar na cognição, regulação emocional e funções neurocomportamentais, aumento da frequência de convulsões e episódios de cefaleia, além de prolongamento do tempo necessário para recuperação de lesões encefálicas, tais como as causadas por TCE e AVC.

 

A INSÔNIA

Insônia é o transtorno do sono mais comum. Considerando que a criança tenha tempo e ambiente suficientes e adequados para dormir, necessita de pelo menos um dos seguintes sintomas (relatados pelo paciente ou pelos cuidadores) para o seu diagnóstico:

  • Dificuldade para iniciar o sono.
  • Dificuldade para manter o sono.
  • Acordar mais cedo do que o desejado.
  • Apresentar resistência à hora de dormir.
  • Dificuldade para dormir sem a interferência de um dos pais ou cuidador.

Além disso, a definição requer que haja uma consequência diurna para essa dificuldade, como fadiga ou sonolência, limitações em funções acadêmicas ou laborais, prejuízo a capacidades cognitivas, transtornos do humor ou problemas comportamentais tanto para o paciente quanto para o cuidador. É considerada crônica quando ocorre ao menos 3 dias por semana, por um período de pelo menos 3 meses.

Os autores consideram ainda que o uso de mídias eletrônicas (TV, computadores, tablets), cada vez mais comuns e que tipicamente emitem luz brilhante, pode afetar a capacidade do corpo em regular a melatonina, o que pode atrasar o início do sono, particularmente se a exposição for próxima ao horário de dormir.

Há uma correlação direta entre insônia e distúrbios emocionais, depressão, taxas de suicídio e externalização de problemas comportamentais (ex.: hiperatividade) na população pediátrica. Naquelas portadoras de transtornos do espectro autista, está relacionada a menor capacidade de fala e socialização e a pior função adaptativa, como aumento de comportamentos repetitivos e estereotipados. Em crianças portadoras de TDAH, nota-se aumento da frequência e gravidade de comportamentos externalizantes, comportamentos oposicionais e sintomas depressivos. Também está associada a problemas de consolidação da memória em crianças com ou sem distúrbios do neurodesenvolvimento, processo que, em geral, depende do sono.

Acredita-se que a insônia seja consequência de estado de hiperexcitação cerebral resultante de um aumento da ativação de sistemas de despertar ou de uma hipoatividade de vias indutoras do sono, ou de ambas.

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DA INSÔNIA

Seu diagnóstico é baseado em anamnese detalhada. Existem questionários de rastreamento, tais como o Children’s Sleep Habits Questionnaire (CSHQ), validado para crianças de 4 a 10 anos, tanto para aquelas com neurodesenvolvimento normal quanto para transtornos do espectro autista ou TDAH. Os autores sugerem, por experiência própria, que a melhor ferramenta é, na verdade, a elaboração de um diário da insônia feito pelo paciente ou pelo cuidador ao longo de 2 semanas consecutivas, e que deve incluir:

  • horário de dormir
  • tempo estimado para o início do sono
  • horários de despertar noturnos
  • horário em que acorda pela manhã
  • cochilos ao longo do dia

O tratamento da insônia em crianças se fundamenta em aconselhamento comportamental e tem por objeto aumentar o drive homeostático para dormir e reforçar ritmos circadianos normais. Para isso, deve-se levar em consideração as recomendações de duração do sono para as diferentes faixas etárias, orientações quanto à higiene do sono (vide quadros abaixo) e estratégias efetivas de cuidadores de crianças com problemas no neurodesenvolvimento. Ao contrário dos adultos, não há aprovação de medicações hipnóticas ou sedativas para tratamento de crianças com insônia pela FDA. Alguns estudos feitos com a administração de melatonina em crianças (a grande maioria feita apenas em crianças com transtornos do neurodesenvolvimento) mostraram que essa medicação, na dose de 5 mg, 30 minutos antes de se apagarem as luzes, quase não apresenta efeitos colaterais e proporciona melhora considerável na indução do sono. Vale lembrar, entretanto, que no Brasil ainda não há aprovação de comercialização de melatonina pela Anvisa.

quantidade-de-sono-recomendada-por-dia-para-crianças

recomendações-de-higiene-do-sono

 

A PARASSÔNIA

Parassônias são comuns em crianças, sendo que a prevalência de pelo menos um episódio entre os 2,5 e 6 anos é de até 84%.

São definidas como experiências ou eventos físicos indesejados que ocorrem no início, durante ou no despertar do sono. São classificadas de acordo com a fase do sono em que ocorrem:

  • não-REM ou NREM (também chamadas de distúrbios do despertar ou parassônias do despertar parcial)
  • REM (ex.: pesadelos, paralisia do sono e distúrbio de comportamento do sono REM).

As NREM, que incluem despertar confusional, sonambulismo e terror noturno, ocorrem quase que exclusivamente durante o sono de ondas lentas (fase 3 do sono NREM), sendo por isso que crianças são particularmente vulneráveis a ter parassônias NREM, uma vez que, comparadas aos adultos, possuem maior quantidade de sonos de ondas lentas (isso diminui na adolescência). Geralmente ocorrem poucas horas após o início do sono, sendo que os episódios duram de alguns poucos minutos até 30-40 minutos e são caracterizados por amnésia do evento.

  • Despertares confusionais são caracterizados por desorientação, atordoamento e, às vezes, agitação intensa após a criança acordar de um sono de ondas lentas ou ser forçada a acordar.
  • Terrores noturnos ocorrem geralmente de maneira repentina, sendo que a criança apresenta-se extremamente agitada, assustada e confusa. Podem ser acompanhados de choro ou gritos, com pico de prevalência de cerca de 34% por volta de 1 ano e meio, caindo para 10% aos 7 anos.
  • Sonambulismo é uma parassônia muito comum, com prevalência de 13% em torno dos 10 anos. Caracteriza-se por deambulação ou outros comportamentos complexos após sair da cama. Durante um episódio de sonambulismo, a criança pode parecer confusa ou atordoada, geralmente de olhos abertos e pode apresentar resmungos ou dar respostas impróprias a perguntas. Pode ainda parecer desajeitada ou praticar atos impróprios, tais como urinar em armários. Acidentes, como quedas em escadas ou sair de casa, podem ocorrer.

Condições que aprofundam o sono NREM, como por exemplo o uso de drogas hipnóticas ou a privação do sono, podem induzir parassônias. Embora esses eventos possam ser desencadeados por estresse, a grande maioria dos casos não tem base em nenhum problema ou trauma psicológico. Outros fatores desencadeantes para parassônias incluem o consumo de álcool, a retirada de drogas que suprimem o sono de ondas lentas (ex.: benzodiazepínicos) e estímulos ambientais que induzem o despertar (ex.: barulhos altos e repentinos durante o sono de ondas lentas).

DIAGNÓSTICOS DAS PARASSÔNIAS

Seu diagnóstico se dá baseado em anamnese detalhada. Vídeos gravados por cuidadores também podem ser úteis. História familiar positiva, particularmente para sonambulismo, também ajuda, uma vez que pacientes sonâmbulos têm duas vezes mais chances de ter um parente de primeiro grau com sonambulismo. Polissonografia noturna não é necessária, mas pode ser benéfica se a história sugerir a presença de outros distúrbios do sono concomitantes (ex.: apneia obstrutiva do sono) ou se comportamentos potencialmente lesivos forem notados, ou ainda se o diagnóstico diferencial incluir convulsões noturnas (nesse caso, conjuntamente a um EEG). No sonambulismo, há a possibilidade de mutações no cromossomo 20q12-13 (gene da adenosina deaminase – ADA) nos casos em que há recorrência familiar, mas ainda faltam evidências concretas acerca dessa correlação.

PARASSÔNIA OU EPILEPSIA?

As parassônias podem ser difíceis de se distinguir clinicamente da epilepsia de lobo frontal noturna. Em geral, essas últimas se caracterizam por movimentos bruscos dos membros ou postura tônico-distônica fora do sono NREM. Parassônias costumam ser precedidas de comportamentos que lembram o despertar, como abertura ocular, elevação da cabeça, olhar fixo, esfregar do rosto, bocejar ou espreguiçamento. As parassônias NREM ocorrem normalmente dentro das primeiras 3 horas de sono, enquanto que a convulsões noturnas associadas à epilepsia de lobo frontal podem ocorrer a qualquer momento durante a noite. Outra diferença é que as convulsões nesse tipo de epilepsia tendem a durar menos de 2 minutos, apresentar padrões de movimentos estereotipados e início e fim abruptos, enquanto que as parassônias tem padrões mais variados e término mais gradual. Por fim, geralmente um estímulo desencadeante, tal qual algum barulho ou evento obstrutivo, está presente em quase metade dos casos de parassônias, mas normalmente não precedem os episódios de convulsão.

TRATAMENTO DAS PARASSÔNIAS

O tratamento das parassônias primeiramente deve incluir a educação da família sobre a natureza benigna e autolimitada desses transtornos. Devemos incluir orientações em relação a medidas de proteção do paciente (ex.: trancamento de portas e janelas, colocação de grades em escadas) e discussão acerca dos estímulos desencadeantes desses eventos.

No caso do sonambulismo, agendar despertares completos 15-30 minutos antes do momento em que geralmente o primeiro episódio ocorre à noite por 2-4 semanas pode ser bastante eficaz. Naqueles casos mais graves, em que o paciente possui risco alto para se machucar, medicações podem ser indicadas, em especial benzodiazepínicos. Há evidências mais recentes de que antidepressivos tricíclicos são também eficazes.

 

A NARCOLEPSIA

Narcolepsia é uma disfunção rara (0,025-0,05% da população, com pico entre 10 e 19 anos), caracterizada por sonolência diurna excessiva com rápida entrada no sono REM, alucinações hipnagógicas, paralisia do sono e sono noturno agitado. Divide-se em narcolepsia tipo 1 (com cataplexia) e narcolepsia tipo 2 (sem cataplexia), sendo que mais da metade dos pacientes se classifica como tipo 1. Essa classificação pode representar um desafio especial para os pediatras e neuropediatras, uma vez que a apresentação da cataplexia em crianças muitas vezes se dá de forma atípica.

Clinicamente, o padrão mais característico da narcolepsia é a sonolência diurna excessiva e crônica (≥3 meses). Tanto os cuidadores quanto a criança podem referir sono sempre que ela não é estimulada (ex.: quando parada assistindo a aulas na escola ou quando como passageiras dentro de veículos). Normalmente as crianças deixam de necessitar de períodos de cochilos diurnos após os 5 anos, de maneira que o retorno desse comportamento pode significar a presença de hipersônia.

Outra característica da narcolepsia é a rápida entrada desses pacientes no estágio REM (com movimentos oculares, tremor palpebral e contrações fásicas). Os pacientes também podem relatar sonhos e pesadelos bastante vívidos. Alucinações hipnagógicas ou hipnopômpicas e paralisia do sono estão associadas à distribuição anormal do REM e refletem o imaginário onírico e a atonia característicos dessa fase do sono. De 39 a 50% dos pacientes com narcolepsia têm esses sintomas e referem alucinações visuais, geralmente com figuras sombrias no quarto, animais, pessoas e formas, tanto ao iniciarem o sono quanto ao despertarem. De 29 a 60% dos pacientes relatam paralisia do sono, que é a incapacidade de se mover por alguns minutos ao despertar.

NARCOLEPSIA, CATAPLEXIA E CONVULSÕES

Cataplexia acontece em 65-75% dos casos e pode ser confundida com convulsões epilépticas e não epilépticas. É definida como uma perda abrupta do tônus muscular com manutenção da consciência, principalmente em resposta a fortes emoções (ex.: risadas, expectativas ou raiva). Geralmente acontece por poucos segundos, mas pode levar até alguns minutos para se reverter ou ocorrer de forma reentrante. A forma como ocorrem varia (abertura da boca, fala arrastada, queda da cabeça ou afrouxamento dos joelhos) e podem levar a quedas, lesões, limitações funcionais, constrangimentos sociais e bullying. Formas atípicas de cataplexia incluem protrusão constante da língua, ptose palpebral, abertura da mandíbula e instabilidade da marcha. Crianças podem apresentar ainda fenômenos motores semelhantes a discinesias ou tiques nervosos.

CARACTERÍSITICAS FISIOPATOLÓGICAS DA NARCOLEPSIA

As narcolepsias podem ser acompanhadas de comorbidades somáticas ou comportamentais, tais como obesidade (50-74% dos pacientes), puberdade precoce e TDAH. Como a apneia obstrutiva do sono é mais frequente em pacientes obesos, essa entidade nosológica também é usual em pacientes narcolépticos.

A fisiopatologia da narcolepsia está ligada à perda de neurônios produtores de hipocretina do hipotálamo lateral, resultando em baixas concentrações dessa substância no LCR (<110 pg/ml). A hipocretina ativa neurônios promotores do despertar no tronco encefálico (ponte e mesencéfalo), hipotálamo, prosencéfalo basal e córtex, que produzem monoaminas, histamina e acetilcolina, substâncias que promovem um estado de vigília sustentado. Existe uma predisposição genética para a perda desses neurônios, já que 90% dos pacientes com narcolepsia tipo 1 são positivos para o haplótipo HLA-DQB1*0602, mas os mecanismos da destruição desses neurônios ainda não foram esclarecidos. Na narcolepsia tipo 2, as concentrações de hipocretina no LCR são normais e apenas 40-50% dos pacientes são positivos para o HLA-DQB1*0602, o que torna a fisiopatologia desses casos ainda mais incerta. O risco de que um indivíduo portador de narcolepsia tipo 1 tenha um filho com a mesma doença é de apenas 1%, sugerindo que fatores ambientais são cruciais para o desenvolvimento da mesma. Associação dessa doença com infecções prévias por Streptococcus e pelo influenza A H1N1 tem sido relatada. Entre 2009 e 2010, um surto com aumento de 12-13 vezes no número de casos na Europa ocorreu após vacinação em massa contra o influenza A H1N1, especulando-se que o desencadeamento tenha se dado pelo adjuvante ASO-3 usado nessas vacinas. Presume-se que o tipo 1 seja um transtorno autoimune, mas ainda não se encontrou evidência de marcadores inflamatórios no LCR mesmo quando coletado bastante próximo ao início dos sintomas nos pacientes.

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DA NARCOLEPSIA

O diagnóstico da narcolepsia também é feito com base em anamnese detalhada. Vários questionários – como a Epworth Sleepiness Scale modificada para crianças, a Pediatric Daytime Sleepiness Scale e a Cleveland Adolescent Sleepiness Scale – estão disponíveis e podem ser usados na abordagem da hipersônia na prática clínica. Determinação do HLA-DQB1*0602 também pode ser útil como marcador da narcolepsia tipo 1, mas 12-38% da população geral é positiva para ele, de maneira que não deve ser considerado como auxiliar diagnóstico para aqueles pacientes com suspeita de narcolepsia tipo 2. A polissonografia noturna pode ser útil para excluirmos outros distúrbios do sono que também podem cursar com hipersônia diurna, além de ser padrão ouro para o diagnóstico de comorbidades como a apneia obstrutiva do sono. Uma entrada rápida no estágio REM durante esse exame também pode ser útil para o seu diagnóstico, já que essa característica é bem marcante em tal distúrbio. Dosagem de hipocretina sérica, como dito, também pode ajudar, especialmente na classificação das narcolepsias.

O tratamento baseado em intervenções comportamentais inclui bons hábitos de higiene do sono e cochilos rápidos (15-20 minutos) durante o dia. Medicações que promovem o despertar, como modafinil e armodafinil, são a primeira linha no tratamento de adultos, mas ainda não foram aprovadas para menores de 17 anos nos EUA. Estimulantes como o metilfenidato e a dexanfetamina são aprovados pela FDA e pela Agência de Medicamentos Europeia para tratamento de TDAH e também podem ser úteis para a narcolepsia. Benefícios substanciais foram relatados em pacientes pediátricos que fizeram uso de oxibato de sódio, incluindo melhora da sonolência diurna, da interrupção do sono noturno e da cataplexia, mas sua segurança e eficácia ainda não estão bem estabelecidas. A cataplexia, além do uso off-label de oxibato de sódio, pode ser tratada com inibidores da recaptura seletiva de serotonina, inibidores da recaptura seletiva de serotonina + noradrenalina e com antidepressivos tricíclicos.

 

Veja o artigo na íntegra (acesso restrito a assinantes do The Lancet).

 

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Antonio Junior

Médico pediatra especializado em medicina intensiva pediátrica, com graduação e especialização pela Unicamp.

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