Conhecer para Suspeitar: Síndrome de Grisel

Resposta do 1º Caso Clínico do nosso Grupo de Discussão, conheça a Síndrome de Grisel, suas causas, os métodos diagnósticos e os tratamentos.

Publicamos um caso clínico/teste de conhecimento no grupo de discussão de casos clínicos de Pediatria do PORTALPED com um questionário. Hoje, divulgamos o resultado parcial e abordamos o assunto.
Caso Clínico
Paciente do sexo masculino, 2 anos, previamente hígido, proveniente da cidade de Campinas-SP.
- Apresenta quadro de tosse seca e coriza hialina com início há 7 dias.
- Passou em consulta com o pediatra, no 3º dia de evolução, que fez a hipótese diagnóstica de resfriado comum e orientou sintomáticos e sinais de alerta.
- Há 3 dias iniciou com febre de 6/6h, 38,5-39,8ºC, sendo medicado com dipirona.
- Há 1 dia ficou mais irritado e se queixando de otalgia à esquerda.
- Hoje procurou o pronto socorro infantil porque começou a apresentar dor e dificuldade/limitação para movimentação do pescoço. Persiste com a otalgia. Não tem história de vômitos/diarreia. Não apresenta lesões de pele.
Antecedente: nega patologias prévias; nega alergia medicamentosa; está frequentando escola há 1 ano; vacinação em dia; ninguém doente em casa. Nega viagens recentes.
Exame físico: paciente em regular estado geral, hidratado, corado, acianótico, anictérico, comunicativo, afebril (T=36,8ºC). Apresenta obstrução nasal, com secreção hialina. Ausculta pulmonar com murmúrios simétricos, sem ruídos adventícios, eupneico. Avaliação cardíaca sem alteração, com pulsos cheios, simétricos e perfusão periférica de 2 segundos. Abdome plano, flácido, sem visceromegalia e indolor à palpação. Oroscopia evidenciando hiperemia, sem hipertrofia de tonsilas e sem exsudato. Otoscopia mostrando abalamento e hiperemia de membrana timpânica esquerda. Apresenta linfonodomegalia em cadeia cervical anterior bilateral, todos medindo menos de 1cm, fibroelásticos, móveis e indolores à palpação. Apresenta dor intensa à mobilização do pescoço, com limitação dos movimentos bilaterais. Não apresenta sinais meníngeos. Pele sem nenhuma alteração.
Hipótese diagnóstica inicial: avaliado no pronto socorro e diagnosticado como otite média aguda (OMA) e prescrito antibiótico e dipirona.
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Concluindo o caso clínico
O paciente apresentou o diagnóstico inicial de otite média aguda (OMA). Tendo como base o perfil de sensibilidade das bactérias relacionadas a OMA no Brasil, a medicação de escolha é amoxicilina na dose de 40-50mg/kg dia, de 12/12h, por 7-10 dias.
Respostas do Grupo de Discussão (72 respostas):
- 91,6%: Amoxicilina
- 8,4%: Amoxicilina + Clavulanato
O paciente evoluiu com dor intensa a mobilização do pescoço, com limitação dos movimentos bilateralmente.
A dor e limitação do movimento do pescoço pode estar relacionado a:
Luxação atlantoaxial não traumática
Respostas do Grupo de Discussão (72 respostas):
- 48,6: Dor relacionada a linfonodomegalia em cadeia cervical anterior bilateral
- 30,6%: Dor irradiada relacionada a OMA
- 13,8%: Luxação atlantoaxial não traumática
- 2,8%: Mastoidite
- 2,8%: Abscesso retro-faríngeo
- 1,4%: Torcicolo não traumático
Qual a conduta inicial:
Analgesia e investigação radiológica
Respostas do Grupo de Discussão (72 respostas):
- 52,8%: Manutenção da dipirona ou paracetamol para analgesia e liberação com orientação
- 25%: Anti-inflamatório não hormonal e liberação com orientação
- 18,1%: Analgesia e Rx de coluna cervical
- 2,8%: Medicar com analgésico e compressa durante observação no PS e avaliar resposta antes de liberar
- 1,4%: Tomografia de crânio
A investigação radiológica (Rx cervical e após tomografia de região cervical) evidenciou subluxação atlantoaxial rotatória.
Qual a hipótese diagnóstica:
Síndrome de Grisel
Respostas do Grupo de Discussão (72 respostas):
- 6,9% do total: Síndrome de Grisel
- 6,9% do total: Subluxação atlantoaxial
- 2,8% do total: Maus tratos
- 5,6% do total: não responderam
- 77,8% não chegaram a essa fase do questionário por não terem optado por investigação radiológica.
Você já ouviu falar na síndrome de Grisel?
A Síndrome de Grisel é uma causa rara de torcicolo, definida como uma subluxação atlantoaxial (C1-C2) não traumática decorrente da frouxidão dos ligamentos que sustentam a articulação atlantoaxial. Geralmente está relacionada com infecções de vias aéreas superiores, infecções de cabeça e pescoço e no pós-operatório de cabeça e pescoço. Manifesta-se clinicamente como torcicolo, com inclinação da cabeça para um lado e rotação da cabeça para o lado oposto.
A fisiopatologia exata da Síndrome de Grisel é desconhecida. Uma das teorias aceitas é que o processo infeccioso, em região de cabeça e pescoço, resulta em inflamação, hiperemia e descalcificação de C1 e C2, causando relaxamento do ligamento transverso anterior, com consequente subluxação. Devido à subluxação, ocorre espasmo do músculo esternocleidomastoideo, compensatório, causando o torcicolo.
A maioria dos casos ocorre em pacientes pediátricos e com Síndrome de Down. Isso pode ter relação com questões anatômicas, como tamanho da cabeça, que é proporcionalmente maior em crianças, musculatura cervical mais fraca, ligamentos mais frouxos, articulações e facetas de C1 e C2 mais profundas e horizontais e processo uncinado pouco desenvolvido. Essas diferenças anatômicas funcionam como alavanca para a mobilidade da cabeça, facilitando a subluxação.
Karkos et al. relataram 96 casos de subluxação atlantoaxial não traumática. 48% ocorreram após infecções e 40% após cirurgia de nariz e garganta (adenotonsilectomia em 78%). Dentre a etiologia infecciosa, o principal responsável foi a infecção viral do trato respiratório superior (83%), seguido de abscesso retrofaríngeo (11%), otite média (4%) e caxumba (2%).
O diagnóstico correto é desafiador e requer um alto índice de suspeita clínica e imagem radiográfica apropriada. Clinicamente, pode-se palpar o processo espinhoso de C2 desviado na mesma direção da rotação da cabeça (Sinal de Sudek), oposto do que ocorre quando o torcicolo não está relacionado com subluxação atlantoaxial (C1-C2), quando o processo espinhoso está desviado na direção oposta à rotação da cabeça. Na síndrome de Grisel, o paciente é incapaz de virar a cabeça para a linha média.

Os exames de imagem vão auxiliar na confirmação diagnóstica.
- Rx simples de coluna cervical: assimetria óssea, deformidade rotacional, intervalo atlantodental e instabilidade com extensão e flexão.
- Tomografia Computadorizada: destruição óssea e desalinhamento das vértebras cervicais, abscessos ou outras infecções de tecidos profundos e do trato respiratório superior.
- Ressonância Nuclear Magnética: mostra mais detalhes de elementos não ósseos, medula espinhal e tecidos moles adjacentes. Também mostra destruição óssea, abscessos ou outras infecções de tecidos profundos e do trato respiratório superior.



Classificação radiológica
Tipo | Achados Radiográficos | Tratamento Recomendado |
I | Desvio rotatório do atlas, sem deslocamento anterior. Neste tipo, o desvio ocorre dentro do arco de movimento normal entre C1/C2 | Antibióticos, benzodiazepínicos ou relaxantes musculares, AINEs e colar cervical macio. |
II | Desvio rotatório com deslocamento anterior do atlas menor que 5mm | Antibióticos, benzodiazepínicos ou relaxantes musculares, AINEs e colar cervical rígido. |
III | Desvio rotatório com deslocamento anterior do atlas maior que 5mm | Antibióticos, benzodiazepínicos ou relaxantes musculares e AINEs. Tração cervical ou redução fechada seguida por um colete de extensão Halo ou órtese Minerva |
IV | Desvio rotatório com deslocamento posterior do atlas sobre o áxis. | Redução cirúrgica e fusão de C1-C2 |
Adaptado de 1, 2.
Classificação de Fielding
Tratamento
O tratamento para a síndrome de Grisel consiste em resolução do processo infeccioso com antibióticos, sintomático (benzodiazepínicos, relaxantes musculares, AINE e imobilização do pescoço) e redução de qualquer subluxação.
O diagnóstico e tratamento precoce previnem sequelas, como anquilose cervical, limitação de movimento do pescoço, dano nervoso, paralisia, deformidade permanente, radiculopatia, dano da medula espinhal e morte. Até 15% dos paciente não tratados desenvolvem complicações neurológicas graves.
Conclusão
Existem inúmeras causas de torcicolo, a maioria benignas. O médico tem que conhecer as possíveis etiologias para poder fazer o diagnóstico correto e instituir o tratamento. Frente a um caso de paciente que apresenta infecção de vias aéreas superiores (amigdalite, otite, abscesso, etc…) e torcicolo, tem que ser aventada a hipótese diagnóstica de Síndrome de Grisel. Nesses casos, é muito comum o paciente apresentar torcicolo persistente e várias consultas médicas sem diagnóstico. Sendo assim, temos que “conhecer para suspeitar” e podermos, dessa forma, ajudar o paciente.
Referências
- Grisel Syndrome: An Unusual and Often Unrecognized Cause of Torticollis; Pediatric Emergency Care: August 2015 – Volume 31 – Issue 8 – p 577–580
- Avaliação retrospectiva dos casos de síndrome de Grisel (fixação rotatória C1-C2) no IOT-HCFMUSP. Coluna/Columna. 2011; 10(2): 102-5
- Grisel syndrome, acute otitis media, and temporo-mandibular reactive arthritis: A rare association. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology 79 (2015) 1370–1373
- Grisel’s syndrome in otolaryngology: A systematic review. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology. December 2007, Volume 71, Issue 12, Pages 1823–1827
- Pediatric and Child Health – Oxford Academy. Volume 17, Issue 5, May 2012
- Euro Rad – Radiological Case Database
- Pediatric Neck Injuries. Pediatrics in Review. January 1999, VOLUME 20 / ISSUE 1